Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
O material não segue nenhuma ordem, seja cronológica, seja de categoria ou qualquer outra. É apenas um registro digital de muitos anos de jornalismo.

26 de fevereiro de 2008

OPERAÇÃO FRANÇA, UM VELHO OSCAR

Ainda estamos vivendo os últimos momentos dos 80 anos do Oscar, comemorados desde a noite do último domingo até a madrugada de ontem, segunda-feira. E canais de TV paga, principalmente o Telecine Cult, da NET, aproveitam bem os dias que sucedem a cerimônia dos prêmios, oferecendo ao telespectador uma programação com obras cinematográficas que têm Oscar na bagagem. Foi o caso, ontem no início da noite, de “A Malvada” (All About Eve, l950), que naquele ano faturou o Oscar de melhor filme, direção (Joseph L.Mankiewicz), roteiro e ator coadjuvante (George Sanders), além de outros dois prêmios técnicos. Quem viu o filme na TV, ainda em preto e branco, sacou os desempenhos notáveis de Bette Davis e Anne Baxter, um duelo sensacional para ver quem era melhor. As duas foram indicadas para o Oscar de melhor intérprete e foram, de fato, as muletas que sustentaram o filme, uma análise rigorosa, sarcástica e corrosiva sobre os bastidores da Broadway, onde impera a filosofia do cada um por si e Deus pra todos. Mas nem Bette Davis, a diva, nem Anne Baxter, a candidata a estrela, levaram a estatueta. Quem ganhou foi Judy Holliday no filme “Nascida Ontem”. “A Malvada” ajudou a impulsionar a carreira da uma novata: se você viu e reparou bem, deve ter adivinhado quem é a lourinha protegida do crítico teatral De Witt, o personagem que deu a George Sanders o prêmio de ator secundário. É Marilyn Monroe.
Seguindo essa linha de mostrar como eram os oscareados dos velhos tempos, hoje, quarta-feira, às dez da noite, o mesmo canal Cult vai exibir “Operação França” (The French Connection), de 1971, vencedor de cinco Oscar: melhor filme, diretor (William Friedkin), ator (Gene Hackman), roteiro e montagem. Com um elenco de cobras que, além de Hackman, tem ainda o espanhol Fernando Rey e o recém-falecido Roy Scheider, o diretor Friedkin desenvolve a trama baseada num fato real: a apreensão de 32 milhões de dólares em heroína contrabandeada, cerca de 12 quilos, a até então maior carga da droga capturada nos Estados Unidos. Robin Moore, o autor da novela de onde saiu o filme, trocou os nomes dos protagonistas da história verdadeira: os detetives Eddie Egan e Sonny Grosso ficaram sendo Jimmy “Popeye” Doyle e Buddy Russo. Os dois verdadeiros, Eddie e Sonny, aparecem no filme como atores. Eles fizeram a apreensão da coca em 1962, depois de uma extensa aventura policial que tem início em Nova York
Talvez, hoje, “Operação França” nem teria sido indicado para qualquer Oscar. Mas, na época, foi um sucesso de bilheteria, faturou os cinco prêmios e ganhou críticas elogiosas pelo roteiro, interpretações, atmosfera sempre nervosa e uma narrativa que envolve qualquer um que goste de cinema policialesco. Tanto fez sucesso que, quatro anos depois (1975), aconteceu a sequência dirigida pelo ótimo John Frankenheimer. Mas não teve o mesmo êxito do original que, em 71, não se sabe por quais razões, derrotou obras muito mais fortes, desde “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, até “Um Violinista no Telhado”, de Norman Jewison, e “A Última Sessão de Cinema”, de Peter Bogdanovich. Todos estes venceriam, menos outro indicado, o péssimo “Nicholas e Alexandra”, de Franklin Schaffner. Caprichos, nem sempre tragáveis, da Academia de Hollywood. Esqueça a mancada e veja “Operação França” hoje à noite. Você não vai se decepcionar se comparar o policial de Friedkin com as besteiras que o gênero policial mostra nesses nossos dias. Boa noite e boa sorte. Lembram da frase?. .

O CIRCO DO OSCAR

Antes tarde do que nunca. Tinha prometido a mim mesmo nunca mais assistir a entrega do Oscar, essa premiação que, ano a ano, fica mais brega e chata, e que, por motivos profissionais, fui obrigado a acompanhar, passo a passo, durante quase 30 anos. Até que me dei conta de que não tinha mais nada a ver com esse circo que, de uns anos pra cá, virou uma espécie de BBB cinematográfica. E vai acabar se transformando num show em que, primeiro, os convidados riquinhos vão assistir a um desfile de modas no “red carpet” para, em seguida, ver o que é que Hollywood e o resto do mundo produziu em termos de filmes com suas novas – ou não – tendências, estilos, linguagens renovadas – ou não – temáticas, efeitos especiais, montagens, fotografia, trilhas sonoras, músicas e, claro, interpretações. Imagino que, pelo andar da carruagem, em alguns anos, alguém vai concordar com aquele veterano produtor de Hollywood que, já nos anos 40, dizia que a chamada Meca do cinema era como o Egito, só tinha múmias.
Digo isso porque fico cada vez mais aborrecido em ver que o velho Oscar, nos seus 80 anos comemorados na festa de ontem, iniciada às 22h30, e encerrada hoje, segunda, quase às duas da madrugada, mais uma vez não privilegiou o cinema e sim o glamour de astros e estrelas que desfilaram aplausos sem saber o que estavam aplaudindo, sorrisos falsos, discursos idiotas – eles fazem parte da longa história do prêmio – e olhares disfarçados entre os concorrentes. É como se eu estivesse disputando algo com você, desviasse o meu olhar para o seu , desse um sorriso disfarçado e pensasse assim: “quero mesmo é que ele se dane”.
Mas acho que é chover no molhado. O Oscar, embora tenha perdido a sua emblemática conotação de festa onde o cinema norte-americano elegia o que houvera de melhor no ano anterior, com deliciosas disputas onde nem sempre o melhor era o melhor e nem o pior era o pior, vai, com certeza, continuar assim. Ou então vira mesmo um desfile de modas, cabelos, sapatos, unhas e jóias. E tudo isso apresentado por gente sem graça como o mestre de cerimônia de ontem, John – ou Jon? – Stewart, que deixou qualquer telespectador mais idoso – ou velho, como queiram – com saudades dos bons tempos em que o Oscar era a cara de um Bob Hope e os convidados iam para a festa com a certeza de que, além das surpresas dos prêmios, teriam grandes sacadas humorísticas de quem sabia como comandar o grande show.
Minha sorte é que, agora, posso colocar no meu blog tudo isso. Nos inúmeros anos que convivi com o Oscar sempre fui condescendente porque, afinal, era o prêmio que todo mundo queria ver, com milhões de dólares em apostas, tipo corrida de cavalos, mas era mais charmoso, mesmo quando exibido em preto e branco aqui pra nós. O cinema mudou, o Oscar também. Os filmes que antes a gente curtia, discutia, analisava, hoje são peças para os saudosistas como eu, que muitos vão julgar um cara ultrapassado se afirmar que ninguém pode comparar, por exemplo, um “Onde os Fracos Não Têm Vez” (melhor filme) com “Os Brutos Também Amam” (1953), igualmente um embate entre o Bem e o Mal, a ambição e a dignidade.
Bem, resolvi não me meter em análise de quem foi premiado ou injustiçado nessa premiação de ontem. Mesmo porque não vi nenhum dos filmes concorrentes, nem me interessaram porque, como disse, já não tenho o compromisso profissional de escrever sobre eles. Prefiro aguardá-los em DVD, e colocar ns minha coleção aquele ou aqueles que julgar dignos de uma filmoteca que considero razoável. Mas o diabo que me irrita todo ano é perceber que, mesmo acreditando que o Oscar vai ser mais uma chatice, acabo ficando, como fiquei, quase quatro horas acompanhando as piadinhas sem graça do senhor John Stewart, o condutor do show, que só fez humor pra americano rir, brincando com o presidente americano George W.Bush, com o casal Clinton etc. E vai por aí. Não me recordo de ter ouvido nenhuma referência a Barack Obama, que os analistas consideram o fenômeno político, nem à renuncia de Fidel Castro, às crises no Afeganistão e no Iraque e às torturas na base de Guantanamo, por exemplo. Em outras épocas, gente como Bob Hope sacariam deliciosas brincadeiras espinafrando politicamente tanto os republicanos quanto os democratas que concorrem à sucessão de Bush. Mas não vimos nada disso no Oscar de ontem. Deve ter sido algum tipo de precaução da Academia de Hollywood em não se envolver politicamente depois que a greve dos roteiristas, que já havia ferrado a festa de premiação do Globo de Ouro, ameaçava também esvaziar o Oscar, e nenhum produtor é de ferro pra agüentar tantos furos nos bolsos. Pequenos furos de alguns bilhões de dólares, considerando-se as perdas que os grevistas infringiram a restaurantes, comércio, joalherias e outros setores envolvidos diretamente com os resultados comerciais das duas grandes premiações hollywoodianas. De cara, ontem, na TNT, o repórter da cadeia de televisão ABC – nem sei o nome – desejava boa sorte ao sempre sorridente George Clooney dizendo “vá em frente porque você sabe que o tapete vermelho é mais longo do que um campo de futebol”. Outra pergunta a uma atriz: “vocês se deram bem fazendo o filme juntas?”. Para o espanhol Javier Bardem (melhor ator coadjuvante em “Onde os Fracos Não Têm Vez”): “foi ótimo você não ter vindo com aquele cabelo que usou no filme”. Para Jack Nicholson, que tem cadeira cativa na fila do gagarejo e não saca os óculos pretos: “você está muito elegante, Jack!”. Sai um, entra outro. Depois da horripilante montagem de abertura da festa, com cenas de perseguições, monstros, sangue, violência, bandidos e mocinhos, bem características do cinema norte-americano de hoje, o tal de John Stewart abre o show estupefato dizendo: “eu não acredito que vocês estejam aqui”. Ora, onde estariam?. E outras bobagens tipo “geralmente a Academia ignora os filmes que não são bons”, “o Oscar faz 80 anos e pode, assim, disputar a candidatura republicana à presidência”. “sabem o que fazem quem está aqui nos intervalos da televisão? Ficam reparando nas roupas que vocês aí estão usando em casa”. Enfim, outro besteirol digno mesmo dos últimos cinco ou dez anos do Oscar. De bom, só a homenagem a Robert Boyle, que fez os desenhos de produção de clássicos como “Intriga Internacional” e “Os Pássaros”, e que apareceu apoiado nos seus oitenta e tantos anos. E os prêmios aos “estrangeiros” Javier Bardem (“Onde os Fracos Não Têm Vez”), espanhol; Marion Cotillard, francesa (“Piaf,Hino ao Amor”, melhor atriz) e à inglesa Tilda Swinton (atriz coadjuvante em “Conduta de Risco”), que mostraram, com suas interpretações, que o chamado “star system”, marca registrada de Hollywood, já era. No ano que vem vou aproveitar este texto só mudando os nomes próprios e os títulos dos filmes. O circo vai ser o mesmo.

23 de fevereiro de 2008

DELMIRO GOUVEIA, UM ANÔNIMO

Garimpando recentemente as empoeiradas gôndolas da locadora do bairro, onde nós, os chamados ratos de cinemateca podemos encontrar velhos filmes em VHS, ainda assistíveis, sem defeitos, alguns até em cópias renovadas, como achei “My Fair Lady”, por exemplo, dei de cara com uma cópia do já hoje velho “Coronel Delmiro Gouveia”, nacional realizado em 1977 pelo diretor Geraldo Sarno. Foi definido em algumas publicações como “um filme simples que procura fazer a defesa dos empresários nacionais”. Até aí, tudo bem, mas é preciso conhecer muito mais sobre quem foi e o que representou este personagem histórico e pouco conhecido, que ganhou apenas rápidos verbetes nas nossas enciclopédias. Interpretado no cinema pelo ator Rubens de Falco, o coronel Delmiro Gouveia, cearense de Ipu, nascido em 1863, assassinado em Alagoas em 1917, de origem humilde, começou a vida em Pernambuco, onde enriqueceu com o comércio de peles. Foi dono da maior refinaria de açúcar da América do Sul, entrou em inúmeras frias, perdeu muito dinheiro e, aos 40 anos, ainda moço, decidiu que seu melhor lugar era o sertão alagoano, uma pequena vila de nome Pedra, perto do rio São Francisco, que hoje provoca tanta discussão entre os que apóiam e os que não aceitam a transposição de suas águas. Naquela época, com certeza Delmiro Augusto da Cruz Gouveia não pensava nisso.

Voltou a ganhar dinheiro com o comércio de peles, e foi então que iniciou um ambicioso projeto de aproveitamento das águas fluviais como energia para acionar geradores de eletricidade. Os historiadores garantem que ele foi o pioneiro da hidrelétrica de Paulo Afonso. Isso porque implantou na região uma fábrica de linhas, abriu estradas, construiu alojamentos para os operários e ajudou como pode, social e economicamente, o pequeno lugarejo. Tinha suas razões. Foi lá que reconquistou a sua grana. Então vieram as pressões políticas, e Delmiro Gouveia acabou assassinado a mando de grupos econômicos que, tendo conseguido a compra da fábrica, destruíram as máquinas e jogaram o ferro velho pela cachoeira.
Assim, Delmiro Gouveia acabou. Acabou? Não. Sujeitos determinados como ele foi não acabam nunca. Simplesmente vão embora dessa pra melhor, se bem que ninguém até hoje voltou pra dizer se a coisa pra lá é melhor mesmo.

Em 24 de março de 1979 escrevi na “Folha de S.Paulo” a minha crítica sobre o filme de Geraldo Sarno, afirmando que um dos aspectos mais destacados e expressivos da obra foi a forma como o diretor misturou o documentário e a ficção para narrar parte da história de um brasileiro que poucos conhecem e que o cinema estava finalmente resgatando. Disse que, numa realização simplória e objetiva, construída dentro de uma fórmula que Geraldo Sarno já vinha utilizando em sua carreira de documentarista – um dos melhores – explorando temas ligados ao Nordeste, esta sua obra poderia ser um estudo mais amplo sobre a controvertida figura de Delmiro Gouveia. Mas o diretor, fiel ao seu estilo, optou pelo realismo do cinema-verdade, ilustrando muitas passagens com uma narrativa linear que nos passa a impressão de que, mais do que a ficção, o que nós temos no filme é um documento.
Assim, podemos refletir a respeito desse personagem. Foi realmente o primeiro nacionalista? Foi, de fato, o pioneiro na industrialização do Nordeste, na transformação dos sertões, no aproveitamento do seu potencial de mão-de-obra que, diretamente, ampliaria as condições sociais da grande região? Tudo o que conhecemos sobre o coronelismo, essa praga que nunca morre, está nas imagens de “Coronel Delmiro Gouveia”. De cara, num depoimento, um velho nordestino diz o que representou a chegada, na região, do homem enérgico e disciplinador. Entra a ficção e temos lances do primeiro golpe político aplicado contra o coronel pelos poderosos, no primeiro dia do século passado, que foi o incêndio no Mercado do Derby, em Recife, que Delmiro mandara construir para que a produção pudesse ser negociada a preços menores, sem exploração dos gananciosos intermediários. Foi aí que Delmiro começou a se estrepar.Teve de fugir para o sertão e, daí em diante, Geraldo Sarno divide sua obra em etapas significativas para explicar o personagem e as condições sócio-econômicas da época. E também explicar porque os interesses multinacionais tentaram – e conseguiram – destruir um homem que havia transformado ignorantes em operários especializados para sua indústria de linhas de costura, dando-lhes condições melhores de saúde, habitação, higiene, alimentação e lazer. Sua persistência em competir no mercado com os ingleses da Machine Cottons, que nunca admitiu concorrência, acabou no assassinato do coronel. Os equipamentos de sua indústria foram jogados na cachoeira de Paulo Afonso, exatamente onde Delmiro Gouveia havia construído a primeira das nossas usinas hidrelétricas, cravada numa borda da montanha.
É gostoso rever a trajetória dessa figura brasileira. Geraldo Sarno e seu colaborador no roteiro, Orlando Senna, poderiam ter contado muito mais, mas optaram pelo filme sem longos discursos que, no cinema brasileiro, acabam sempre caindo no panfletário. Nessa linha, podemos aproximar o filme do também politicamente correto “O Caso Mattei” (1971, Palma de Ouro em Cannes), do italiano Francesco Rosi, que narra a trajetória de Enrico Mattei, aquele italiano metido a besta que ousou enfrentar as Sete Irmãs, as multinacionais do petróleo, e, tal qual Gouveia, acabou numa cova, vítima também do jogo sujo e violento. Sugiro que o leitor conheça o filme. Vai começar a entender algumas causas das nossas sucessivas crises de apagões energéticos. E talvez chegue à conclusão de que, se vivesse nesta nossa época, o coronel Delmiro Gouveia seria o nome mais indicado para ser o nosso ministro de Minas e Energia. Ele, pelo menos, entendia do assunto.

Em tempo: comecei este artigo anteontem, dia 20. Ontem, 21, ouvindo o noticiário no café da manhã, fiquei sabendo que o ator Rubens de Falco tinha falecido aos 76 anos, vítima de uma parada cardíaca, conseqüência de um acidente vascular cerebral. No papel de Delmiro Gouveia, Rubens de Falco enriqueceu o personagem nacionalista que os nordestinos consideram um herói sem estátua. De Falco teve participação significativa no cinema nacional e, principalmente, na TV, em telenovelas que marcaram época, como “A Escrava Isaura” e “Os Imigrantes”, as duas na Bandeirantes. No cinema brasileiro, melhor mesmo é lembrar a atuação dele em “Coronel Delmiro Gouveia” e esquecer títulos muito menos expressivos que nem merecem ser citados. Foi sempre um ator competente.

21 de fevereiro de 2008

ICHIKAWA, ROBBE-GRILLET, WAJDA

Na semana passada levaram Roy Scheider, o matador de tubarão. Também foi embora um dos grandes e mais expressivos nomes do cinema japonês, Kon Ichikawa. E agora, no início desta semana, leio sobre a morte de Alain Robbe-Grillet, um dos grandes da literatura francesa e também, por que não, do cinema. As bruxas estão soltas e atacam gente da melhor qualidade, sem antes perceber que há, por aí, um bando de alienados matando gente a torto e a direito, como o sujeito que invadiu o posto de gasolina e atropelou o frentista, o maluco que dirigiu na contra-mão na Castelo Branco, o outro que liquidou cinco ou seis em escola norte-americana, sem contar que, por aqui, na pátria amada, o que mais se ama é o cartão de crédito do qual nenhum político quer se livrar. A morte do diretor Kon Ichikawa, aos 92 anos, na terça da semana passada – 12 de fevereiro – empobreceu um pouco mais o cinema do Japão. No cinema japonês não que ele fazia muita falta, porque não filmava há anos. Mas principalmente pelos bons filmes que realizou em sua carreira, construída nos anos em que o cinema japones tinha nomes mais expressivos, como Akira Kurosawa, Massaki Kobayashi, Tadashi Imai, Tomu Ushida, Eizo Sugawa e Hiroshi Inagaki, entre outros menos talentosos e internacionalmente menos conhecidos. Foi a época em que Kurosawa, com o seu hoje clássico e fantástico “Os Sete Samurais” (1954), Oscar de melhor obra estrangeira em Cannes, em 55, abriu as portas do Ocidente para um cinema até então fechado em suas próprias limitações – ou receios de se expor diante do mundo – e que depois, junto com outras preciosidades como “Rashomon” (1950, Oscar de melhor filme estrangeiro) do mesmo Kurosawa, perdeu o medo e arrebentou. Os cinéfilos, depois desses dois títulos e de alguns outros, descobriram que aqui, São Paulo, as pequenas salas de exibição situadas no bairro da Liberdade já vinham oferecendo essas jóias que ficavam limitadas aos espectadores da colônia e nem chegavam aos cinemas do centro da cidade. Depois tudo mudou, culpa de Toshiro Mifune que, descobrimos, foi o maior samurai do cinema. Mas vieram obras preciosas tipo “Onibaba”, “A Ilha Nua”, “O Gato Preto” e por aí.
Cinema japonês já não era sinônimo de bobagens. Nem aqui nem em lugar nenhum. Assombrou o mundo, e me recordo que, quando jovem, o cine Marília, lá no Interior, tinha semanalmente uma sessão especial, se não me engano às terças-feiras, só com cinema japonês. E era casa cheia. Foi lá que vi pela primeira vez “Os Sete Samurais” e comecei a verificar que cinema não era somente Hollywood. Mas estamos falando sobre a morte de Kon Ichikawa. Não foi um cineasta de tanta mão cheia quanto Kurosawa, ou Uchida, ou Kaneto Shindo, mas teve os seus méritos. No começo dos anos 60, por exemplo, realizou “Fogos na Planície”, libelo sobre a Segunda Guerra; em 65 ganhou o prêmio da crítica em Cannes pelo documentário monumental que realizou sobre a Olimpíada de Tóquio. Mas os críticos gostam mesmo é de “A Harpa da Birmânia” (1956), também antibelicista, embora façam referências elogiosas a “Eu Sou Um Gato” (1975), que não conheço mas me parece uma refilmagem do clássico “Um Dia, Um Gato”, o delicioso poema cinematográfico que o tcheco Vojtech Jasny filmou em 1963. Ichikawa, de qualquer forma, deixou seu nome marcado entre os grandes do cinema do Japão, aquela geração que abriu todos os caminhos para conquistar o Ocidente.
E, coincidentemente, deste ontem, dia 20, comemorando o centenário da chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, o Centro Cultural Banco do Brasil tem uma retrospectiva riquíssima do cinema do Japão. Tem filmes de Yasujiro Ozi, Kenji Mizoguchi e outros cineastas. Eu recomendo “A Ilha Nua”, de Kaneto Shindo, obra magnífica onde o único som de voz humana é o grito desesperado de uma mulher.

GRILLET

Na segunda-feira, 18, morreu outra figura importante nas Letras e no cinema: Alain Robbe-Grillet, que estava nos seus 85 anos e foi um dos grandes nomes do chamado “nouveau roman”, o movimento que mexeu fundo com a literatura francesa, tanto quanto o cinema neo-realista na Itália, o “film noir” nos Estados Unidos e, por que não, o nosso Cinema Novo. Grillet acabou ficando conhecido mais pelo roteiro de um clássico, “O Ano Passado em Marienbad”, de 1961, realizado por Alain Resnais, do que exatamente por sua obra literária, embora importante também. Mas se perguntarem a algum estudante de cinema quem foi Robbe-Grillet, vão associar seu nome ao filme de Resnais, embora, acredito, a maior parte dos que estudam cinema nas nossas escolas de Comunicação nunca ouviram falar dele. E nem assistiram uma única vez o clássico que, segundo os estudiosos, é um filme tão enigmático quanto fascinante.
O diretor Alain Resnais, que sempre buscou novas formas para a linguagem cinematográfica, soube como utilizar com riqueza as ambigüidades do roteiro de Robbe-Grillet. E união entre os dois, Resnais e Grillet, nos deu outra obra-prima.

WAJDA E AS GUERRAS

O polonês Andrzej Wajda voltou com tudo. Depois de alguns anos de jejum cinematográfico, realizou “Katyn”, puro cinema político, mais uma vez, exibido no Festival de Berlim que terminou há uma semana e consagrou com o Urso de Ouro o nosso “Tropa de Elite”. Wajda é um especialista em fazer filmes sobre os problemas, a violência, os dramas e todos os outros problemas que envolvem qualquer guerra. Fez isso em quase todos os seus filmes, desde o clássico “Cinzas e Diamantes”, dos anos 50, sobre a atmosfera de hecatombe que persidiu ao nascimento do novo Estado polonês, até “Canal” e os mais recentes, “O Homem de Ferro”, e, agora, este “Katyn”, inédito aqui. Não vi, mas imagino o que Wajda deve ter feito, mais uma vez, com os dramas de seu povo, as tragédias históricas que sempre foram suas preocupações e estão nos seus melhores filmes, inclusive aqueles que mostram a ascensão do Solidariedade, o sindicato do líder Lech Walessa, mais tarde, tal qual o nosso Lula, elevado à presidência da Polônia. Como ainda não conheço, fico com os comentários do crítico Luiz Carlos Merten, no Estadão de 16 de fevereiro, quando ele faz referências ao fato de que, em Berlim, este ano, encontraram-se dois dos mais aplicados cineastas de filmes políticos dos últimos anos, Wajda e o italiano Francesco Rossi. Já imaginaram o que deve ter saído de qualquer conversa entre os dois?. Merten, no seu jornal, informa que Wajda sempre quis contar a história de Katyn que é a seguinte, resumindo: no início dos anos 40, cerca de 22 mil oficiais militares e intelectuais foram mortos pelo Exército Vermelho na floresta de Katyn. Um crime que durante muito tempo foi atribuído aos nazistas, mas na verdade foi coisa do sanguinário Joseph Stalin, que então já fazia planos para invadir a Polônia, no fim da Segunda Guerra. “Esta história sempre me interessou de maneira particular porque meu pai foi um dos oficiais mortos em Katyn”, reproduzindo declarações de Wajda ao crítico brasileiro. Que emenda: “Foi uma experiência muito dolorosa que fiz para exorcizar uma tragédia que se abateu sobre minha família, quando eu ainda era muito pequeno”. No seu comentário no Estadão, Merten diz que a preocupação de Wajda, agora, é evitar que seu filme seja utilizado politicamente, na Rússia ou em qualquer outra parte, porque diz Wajda – “existem políticos russos interessados em vincular o lançamento do filme à data de aniversário de Stalin, para criticá-lo. Este filme é uma experiência muito íntima e não quero servir como massa de manobra. Estaremos, mais uma vez, diante de outra obra politicamente correta de um cineasta politicamente correto. Como sempre foi.

14 de fevereiro de 2008

JOHN FORD SE DIVERTE

Li recentemente um gostoso artigo onde o autor – e nem sei quem foi – analisa o ócio como alguma coisa que faz bem pra saúde, ao contrário do cigarro. O ócio é aquela pausa que todos os aposentados ganham e curtem desde que não fiquem pensando na miséria que vão receber até o fim da vida. Como diria a nossa cara ministra, “recebam e gozem”. O ócio, segundo o artigo, é muito melhor para a saúde do que se imagina e além daquilo que os médicos reprovam. É o período em que, sem nada a fazer, e pouca coisa em que pensar, os ociosos gastam seu tempo enchendo a cabeça de boas idéias. Ou idéias ruins. Foi no ócio, descansando a sombra de uma macieira, que o nosso caro Isaac Newton (1642-1727) encontrou o caminho para estabelecer a sua teoria da gravitação. Foi na prisão que Cervantes teve tempo suficiente para iniciar o seu “Don Quixote”. São apenas dois exemplos de que ficar coçando, de vez em quando, dá mais resultados do que pegar no cabo da enxada.
E foi o ócio o responsável por um dos filmes mais gostosos que o diretor John Ford realizou em sua vasta e rica carreira no cinema norte-americano. Quem nunca viu “O Aventureiro do Pacífico” pode procurar nas boas locadoras, mas creio que será difícil encontrar. Tentem porque vale a pena. Tenho uma cópia em VHS e não troco por nada porque volta e meia revejo pra verificar como John Ford, o mestre dos maiores “westerns” (“No Tempo das Diligências”, “O Homem Que Matou o Fascínora”, “Rastros de Ódio”, “Crepúsculo de uma Raça”) e também de outros clássicos além dos faroestes, como o notável “Depois do Vendaval” (“The Quiet Man”, 1952), era capaz de reunir sua gang de atores (John Wayne, Lee Marvin e outros), convencer os produtores, arrumar a bufunfa e juntar toda a sua divertida quadrilha numa ilha dos Mares do Sul para o que? Levar a sério o cinema? Não, apenas filmar uma aventura descontraída, leve, divertida, etílica, sem nenhum compromisso com linguagem, estética, filosofia, psicologia, análises ou o que fosse que ele tivesse levado em consideração em todos os seus anteriores grandes filmes.
Foi em 1963 que Ford realizou “O Aventureiro do Pacífico” (“Donovan’s Reef”). Se vocês procurarem maiores detalhes sobre este pequeno mas delicioso trabalho que o diretor realizou numa época de puro ócio – estava sem projetos – talvez nem encontrem. Juntou alguns de seus atores preferidos e parece ter dito o seguinte: “como estamos todos coçando o saco, vamos pelo menos nos divertir fazendo um filme num paraíso, bebendo, rindo e esculhambando o mundo”. O filme é mais ou menos isso, embora tenha uma história tradicional, com início, meio e fim, e aquele inevitável “happy end”.
Mas o que atrai mesmo é a forma como todos – diretor, atores e figurantes – agem como se não houvesse perto deles nenhuma câmera de cinema filmando as brincadeiras. Porque, na maior parte do tempo, o filme é uma grande gozação, feito sem nenhuma pretensão de agradar nem público, nem críticos, nem produtores, mas apenas eles, John Ford, John Wayne, Lee Marvin e a atriz Elizabeth Allen, no caso a mocinha. É tudo uma grande farra onde Wayne e Marvin passam o tempo inteiro brigando, a moça herdeira de 15 milhões de dólares vai reencontrar o pai médico e já enraizado na ilha, e o cenário evocando os aspectos sagrados que envolvem os habitantes do lugar.
Tem razão o crítico Luiz Carlos Merten quando escreveu que “O Aventureiro do Pacífico” não é apenas uma comediazinha de aventuras e sim uma “a pequena utopia de John Ford, onde diversas culturas, etnias e religiões coexistem no mesmo espaço”. John Ford, que morreu em 1973 aos 78 anos, teve tempo, portanto, de mostrar que até no ócio ele era criativo.

13 de fevereiro de 2008

UM OLHAR ALEMÃO SOBRE A SEGUNDA GUERRA

Se você é um desses maníacos por cinema já com o saco cheio de tanto ver Harry Potter, Rambo, Batman, horrores, catástrofes, sexo, romantismo e violência, dedique a semana entre 19 e 24 deste mês de fevereiro para acompanhar no Centro Cultural São Paulo – sala Lima Barreto – o ciclo “A Alemanha e a Segunda Grande Guerra”, promovido junto com o Instituto Goethe. São 14 filmes produzidos na Alemanha a partir dos anos 50 e até recentemente, e que tentam explicar como os alemães viram a Segunda Guerra depois que o conflito acabou, em 1945, deixando as seqüelas que todos nós mais velhos conhecemos e vimos em tantos e tantos filmes explorados pelo cinema americano, essencialmente, todos eles feitos sob o ponto de vista dos vencedores, americanos, russos, ingleses e o resto que se envolveu na luta contra Hitler.
Pouco sabemos sobre estes quase novos filmes que jovens e velhos diretores realizaram para tentar explicar fatos e situações que levaram os alemães ao caos. Conhecemos melhor o cinema alemão através das obras – grandes filmes – do expressionismo e seus personagens clássicos, Nosferatu, Caligari, mas pouco sabemos sobre a forma como Adolf Hitler usou o cinema nos anos 30 e 40 para mostrar que não era apenas Stalin o feiticeiro capaz de chutar os calcanhares de Tio Sam. No livro “Cinema e Política” (Editora Paz e Terra, 1976), os autores Leif Furhammar e Folke Isaksson, conseguem nos passar uma boa idéia de como tanto Stalin quanto Hitler usaram o cinema como arma de propaganda. Depois de Lênin, claro, porque, segundo os autores, foi Lênin quem primeiro descobriu que a arte inventada pelos irmãos Lumiére era, na verdade, o mais poderoso engenho de manipulação de massas. Consultando o livro, agora, mais uma vez, lembro que fez parte da Coleção Cinema, da Paz e Terra, então dirigida por Jean-Claude Bernardet e Paulo Emilio Salles Gomes, dois dos nossos mais conhecidos estudiosos. E que o Conselho Editorial da Paz e Terra era formado por Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido e Celso Furtado. Lembram-se deles?
Antes, durante e depois da Segunda Guerra muitos diretores alemães se mandaram ou foram mandados. Fritz Lang foi deles. Foi o mesmo tipo de caça que Stalin havia promovido contra grandes diretores colocados na lista negra – o macartismo soviético – porque vistos como “elementos cosmopolitas”. “Eisenstein - afirmam os autores do livro – era constantemente perseguido por suspeitas enquanto fazia a segunda parte do clássico “Ivan, o Terrível”. Eles também contam que em 29 de abril de 1926, dia da estréia de “O Encouraçado Potemkin” em Berlim, as autoridades alemães já haviam colocado o filme no index dos proibidos. Foi preciso uma intensa campanha da imprensa para liberar a obra, mas os soldados alemães foram oficialmente advertidos de que não deveriam ver o filme porque “encorajava a desobediência, os motins, a rebelião e a revolução”.
Bem, o que vem depois é sabido. Como Hitler já se foi há muito e o cinema alemão, hoje, não tem mais os ranços de anti-semitismo, anti-americanismo ou anti outros povos, é bom conferir na mostra que o Centro Cultural São Paulo inicia na terça-feira próxima, 19 de fevereiro. Vai exibir “Hitler, um Filme da Alemanha”, de Hans-Jurgen Syberberg, dividido em quatro partes, e mais “A Noite, Quando o Diabo Veio”, “A Ponte”, “Alemanha, Pálida Mãe”, “David”, “Estrela Sem Céu”, “Nós, Filhos do Inferno”, uma obra onde o diretor Syberberg tenta explicar, a partir de uma colagem, o Hitler do nacional-socialismo em suas raízes e contextos mitológicos. E mais: “A Rodovia do Reich”, “O Nono Dia” e, encerrando o ciclo, “A Queda – as Últimas Horas de Hitler”, do diretor Oliver Hirschbiegel, que aborda os últimos dias do ditador nazista narrados por Traudi Junge, que era a secretária de Hitler durante a Segunda guerra.

12 de fevereiro de 2008

ROY SCHEIDER, BOM ATOR

É outro que se vai. Anteontem (10 de fevereiro), aos 73 anos, morreu o ator Roy Scheider, o xerife da pequena cidade litorânea de Amity que, em 1975, Steven Spielberg usou como cenário para filmar “Tubarão”, o filme que, depois de “Inferno na Torre”, realizado um ano antes, causou um rebuliço no chamado filme-catástrofe, aqueles que intrigam, assustam, provocam, metem medo e fazem você ficar um bom tempo sem tomar banho de mar. Foi o que aconteceu depois que “Tubarão” estreou. Uma pesquisa nos Estados Unidos revelou que grande parte dos banhistas e surfistas estavam mais tranqüilos curtindo a areia das praias em vez de se meterem mar adentro, mesmo sabendo que, no filme, quem acaba com o grande tubarão assassino é aquele xerife que decide interditar as praias de Amity, enfrentando os políticos e assumindo, ele, Roy Scheider, o papel de guardião da sociedade.
“Tubarão” foi, com certeza, o sucesso popular desse ator que, se nunca foi nada de extraordinário, sabia fazer o arroz-feijão sem cansar a nossa beleza. Pelo menos morreu tranqüilo, sabendo que não entrou no rol dos canastrões que Hollywood criou ao longo dos seus anos dourados. Scheider, que nunca foi nenhum desses astros engomadinhos ou rebeldes do cinema americano, sempre soube dignificar os personagens que interpretou. E não foram poucos. Roy Richard Scheider, nascido em 10 de novembro de 1935 em Orange, Nova Jersey, passou a fazer parte da tropa americana de bons atores a partir de 1972, quando foi indicado ao Oscar de coadjuvante por seu papel no policial “Operação França”, de William Friedkin. Mas seu talento nasceu principalmente no teatro, interpretando personagens de Shakespeare como Ricardo III no New York Shakespeare Festival, em 1961. Ali, descoberto por um produtor de Hollywood, foi fazer primeiro os telefilmes, primeiros passos para fazer carreira em Hollywood. Depois de pontas em filmes bons e ruins, engatou e deslanchou: “Na Calada da Noite”, com Meryl Streep, astronauta em “O Ano em Que Faremos Contato”, o segundo “Tubarão”, uma desastrada sequência, “O Abraço da Morte”, “O Atentado”, o bom “Klute, o Passado Condena”, de Alan J.Pakula, “Trovão Azul” e vai por aí.
Mas, apesar dos relativos êxitos em vários filmes, Roy Scheider não fez nada melhor do que o Joe Gideon, o diretor e coreógrafo de “All That Jazz” (“O Show Deve Continuar”, 1979). Por que foi este o seu melhor desempenho?. Porque quem o dirigiu foi simplesmente um dos maiores – senão o maior – diretor-coreógrafo da Broadway e do cinema musical norte-americano, Bob Fosse, o criador dos monumentais números de balé caleidoscópico na época em que Hollywood deitava e rolava nesse gênero. E Bob Fosse era o número um, apesar da forte concorrência. Os mais antigos, pra não chamar de velhos cinéfilos, curtem “All That Jazz” até hoje como um culto à morte e à autodestruição. É o grande filme – quem nunca viu pode ver nas locadoras – na carreira de Scheider, e certamente uma marca da filmografia expressiva de Bob Fosse. Aliás, ele era um sujeito tão esquisito que resolveu ser ator e fez o papel da serpente na pequena e bonita fábula “O Pequeno Principe”, a versão que o diretor Stanley Donen fez para obra literária clássica de Saint Exupéry, leitura obrigatória de nossa infância, se bem que hoje, lendo as notas de vestibulandos, é capaz de ter virado “Santo Exasperado”, da mesma forma como Sancho Pança, o fiel escudeiro de Don Quixote, virou São Chupança. Assim não pooooode...
Bob Fosse encontrou em Roy Scheider aquele ator perfeito para personificar quem, quem?. Ora, ele mesmo, Fosse, já que “All That Jazz” é de cabo a rabo autobiográfico, ou seja, narra a trajetória do próprio Fosse, o Joe Gideon interpretado por um ator que assimilou como ninguém a alma do personagem que Bob Fosse criou: ele mesmo, diretor e coreógrafo que, após um enfarte, se recusa a parar com seu trabalho, com o cigarro e com as generosas doses etílicas, e também com o sexo, e vai pro brejo, não sem antes levar pra cama o número suficiente de mulheres pra matar qualquer um da idade dele. E, claro, de dialogar com o Anjo da Morte que iria abrir o caminho pra não sei lá onde.
O fato é que Fosse e Scheider se deram bem. Em “All That Jazz”, que realizou logo em seguida ao sucesso do musical “Cabaret”, com Liza Minelli, o diretor Gideon interpretado por Roy Scheider era ele. Foi uma alquimia perfeita porque, segundo o jornalista e crítico Ruy Castro, grande amigo, no seu livro “Um Filme é Para Sempre”, que recomendo e já li três ou mais vezes, para Bob Fosse, o show nunca devia terminar. Ele morreu em 1987. E agora o show terminou para Roy Scheider. Os tubarões de Amity já podem voltar a atacar porque o xerife morreu.

9 de fevereiro de 2008

O VELHO E O MAR

Um amigo pescador com quem conversava num dia desses não se lembrava de um velho filme de Hollywood onde o personagem principal travava uma luta incansável com um grande peixe que fisgara no mar. Respondi que, pela história, só poderia ser o clássico “O Velho e o Mar”, interpretado por Spencer Tracy. Aí, então, a memória dele esquentou, lembrando que havia visto o filme pela primeira vez num cineminha em cidade do Interior paulista e que, na época, já começava a não gostar muito de histórias sobre pessoas obrigadas a enfrentar situações que ele julgava absurdas mas que podiam acontecer com qualquer um que se dispusesse a medir seu grau de coragem e determinação.
Como sei que o amigo é um visitante assíduo do meu blog, mando a ele algumas informações adicionais sobre este filme de 1958, portanto já com meio século, dirigido por John Sturges, que fala sobre o velho pescador Santiago e sua heróica batalha contra o gigantesco espadarte na costa da Cuba, se não me engano. O filme é uma adaptação para o cinema da novela publicada em 1952 pelo escritor Ernest Hemingway (1899-1961), o mesmo autor de “Paris é Uma Festa” e “Por Quem os Sinos Dobram”, entre outras ótimas obras literárias.
Hemingway pôde se dar ao luxo de ter sido um dos poucos escritores que o cinema não traiu. Ao contrário, enalteceu. Suas melhores obras foram filmadas e tiveram versões fiéis, dignas, realizadas por cineastas competentes como Charles Vidor no drama de guerra “Adeus às Armas” (1957), ou Sam Wood na história sobre a Guerra Civil espanhola em “Por Quem os Sinos Dobram”, ou ainda Henry King em 57, com “E Agora Brilha o Sol”, romance com muitas conotações autobiográficas.
Mas talvez tenha sido o diretor John Sturges (“Sete Homens e Um Destino”, 1960) aquele que mais manteve fidelidade a Hemingway ao adaptar “O Velho e o Mar”, uma narrativa relativamente curta mas tratada, na literatura e no cinema, com extrema sensibilidade. Nem Hemingway, nem Sturges, precisaram senão de um peixão e um pescador. E, claro, um barco, o mar e os tubarões. É o velho Santiago (Spencer Tracy, que morreu em 67 aos 67 anos) que, a certa altura do filme, exaurido pelo desgaste na guerra contra o peixe, nos dá a frase que resume toda a filosofia da obra de Hemingway: “o homem pode ser vencido, mas nunca derrotado”. Uma homenagem ao valor e à coragem do ser humano diante da natureza, da solidão e do medo.

8 de fevereiro de 2008

ROBERTO SANTOS

Um amigo cinéfilo lembrou-se da data: 3 de maio de 1987, o dia da morte do diretor paulista Roberto Santos. Há 21 anos, portanto. Ele se sentia chateado porque, no ano passado, a mídia cinematográfica praticamente ignorou o fato de estarem sendo lembrados os 20 anos do desaparecimento do cineasta. E pediu-me que, em homenagem a ele, Roberto Santos, eu colocasse no meu blog algum texto sobre o cinema dele, seus filmes e o que ele representou para o movimento cinematográfico paulista e brasileiro. Portanto, eis aí um apanhado que talvez dona Marilia Santos venha a ler pra saber que os que conheceram e conviveram com seu marido não se esqueceram dele, nem de uma de suas frases mais criativas e citadas: “o problema do cinema brasileiro é não ser estrangeiro”.
Roberto Santos morreu aos 59 anos quando desembarcava no aeroporto de Cumbica, retornando do Festival de Gramado, RS, onde havia concorrido com sua última obra, uma versão livre do romance “Quincas Borba” que, pra decepção do diretor, não agradou ninguém, nem público e nem críticos – e aí eu me incluo – que receberam o filme com uma frieza glacial. Talvez esse fato tenha colaborado na parada cardiovascular que sofreu no desembarque. Três anos antes, Roberto Santos tinha sofrido uma ameaça de enfarte. No PS do aeroporto, foi atendido pela médica Lúcia Raquel Souza Dias, mas já era tarde. Eu cheguei em Cumbica no vôo seguinte ao dele, também vindo de Gramado,e foi a atriz Irene Ravache quem me passou a notícia. Na época, a agência Jornal do Brasil e um dos filhos do cineasta garantiram que não havia médicos de plantão no aeroporto, mas a médica Lúcia Raquel garantiu ele Roberto Santos havia sido transportado para o hospital Carlos Chagas ainda com chances de sobrevivência, mas as tentativas de salvá-lo foram em vão.
Um dos nomes mais expressivos do Cinema Novo brasileiro surgido na década de 60, Roberto Santos nasceu aqui mesmo em São Paulo em 1928. Estaria agora nos seus 80 anos, 35 deles construindo uma exemplar filmografia que, embora com altos e baixos, está registrada na História do filme nacional pelo rigor narrativo de suas principais obras. Depois de freqüentar dois dos primeiros cursos de cinema promovidos aqui, Roberto Santos iniciou a carreira de onze filmes trabalhando como assistente de direção do diretor Nelson Pereira dos Santos em “Rio, 40 Graus”, de 1955, um marco do cinema que a partir daí provocaria a revolução na linguagem e na temática do filme brasileiro, até então praticamente mergulhado nas chanchadas.
Seu primeiro filme longo, “O Grande Momento”, é até hoje visto como um marco da observação de costumes ambientado na zona Leste de São Paulo, embora hoje, 21 anos depois de sua morte, Roberto Santos certamente teria mais concorrentes no cinema tipicamente paulista. Por exemplo: Carlos Reichenbach, João Batista de Andrade e Ugo Giorgetti, que se especializaram em usar os confins ameaçadores da megametrópole como cenários para seus filmes, E muito bem, diga-se. Vocês viram, por acaso, “Lillian M” e “Anjos do Arrabalde”, do primeiro, Reichenbach; ou “A Próxima Vítima” e “O Homem Que Virou Suco”, do segundo, Batista, ou “Boleiros”, de Giorgetti?. Então vejam.
Oito anos depois, em 66, Roberto Santos fez o que mais desejava: adaptar para o cinema uma obra literária de João Guimarães Rosa, o escritor mineiro que ele curtia. Poderia ter sido “Grande Sertão: Veredas”, ou “Miguelin”, ou “A Hora e Vez de Augusto Matraga”. E sobre o último título, uma recomendação aos iniciantes em cinema: o original é mesmo assim, “A Hora e Vez de Augusto Matraga”. E não “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Bem, Roberto Santos preferiu adaptar “Matraga”. Morreu sem filmar “Miguelin”, e quando me visitava, na Redação da “Folha de S.Paulo”, discutíamos as riquezas da história do escritor mineiro e suas possibilidades de se tornarem, também, narrativas poéticas e vigorosas como foram as de “Matraga”, as aventuras do jagunço violento que, depois de traído, retira-se para uma espécie de meditação e auto-flagelação. A história de Matraga é parte da primeira coletânea do escritor, “Sagarana’, e foi adaptada ao teatro pelo diretor Antunes Filho.
“Matraga” foi, sem dúvida, o grande momento de Roberto Santos no cinema brasileiro, pelo tratamento do tema, pelo elenco – um Leonardo Villar com jeitão de anjo e demônio - , pelos cenários rudes e secos, pelo clima de ansiedade, lirismo e brutalidade, pela fotografia despojada e pela trilha sonora composta especialmente por Geraldo Vandré, que tem “Modinha” e “Cantiga Brava” como carros-chefes. Sorte de Guimarães Rosa, que no cinema brasileiro poderia ter visto a versão de “Miguelin”, projeto que Roberto Santos não teve tempo de realizar, e azar dele, o escritor, porque nem “Sagarana, o Duelo”, nem “Grande Sertão: Veredas”, foram, nas versões para o cinema, boas homenagens ao escritor.
Roberto Santos dirigiu um dos melhores episódios da comédia “As Cariocas” e, em 68, fez “O Homem Nu”, inspirado em história de Fernando Sabino. Retomou os temas rurais com “Um Anjo Mau”, de 71, depois participou de um filme realizado com outros diretores e, no mesmo esquema, esquentou o episódio “Arroz Feijão”, do longa “Contos Eróticos”. Tendo como ponto de partida um conto da escritora Lygia Fagundes Telles, “A Caçada”, ele dirigiu “As Três Mortes de Solano”, e três anos depois, em 79, caiu no romantismo quando filmou “Os Amantes da Chuva”. Nenhum desses últimos filmes puderam ser comparados ao vigor de um “Matraga”, menos ainda
“Nasce Uma Mulher”, de 83, sobre virgindade, preservativos e conflitos entre pais e filha com aquele moralismo burguês que o diretor volta e meia gostava de ridicularizar.
Bondoso, excêntrico, explosivo, carinhoso e terno, Roberto Santos era professor na Escola de Comunicação e Arte da USP em 82 quando passou de diretor a personagem. Para impedir o corte de duas árvores – tipuanas – na rua Artur Prado, na Bela Vista, ficou duas horas pendurado nos galhos das árvores e conseguiu impedir o corte de uma delas. Virou manchete nos jornais não porque queria isso e sim porque desprezava o descaso com o ambiente e com os seres humanos. Isso tudo está muito bem registrado em seus filmes. Pena que no cinema brasileiro, até hoje, ninguém tenha se lembrado de voltar a Guimarães Rosa e ao pequeno Miguelin que Roberto Santos tanto queria filmar.

7 de fevereiro de 2008

O GRANDE DITADOR - último discurso

Ricardo, visitante do meu blog, pediu para que reproduzisse o texto do discurso pronunciado por Charles Chaplin no seu clássico “O Grande Ditador”. Quer imprimir e colocar, bem colocado, em seu escritório. Tem bom gosto. Pior se me pedisse o repeteco de algum pronunciamento de Eduardo Suplicy, ou do presidente Lula atacando as elites. Prefiro Carlitos, como ele. Primeiro, algumas anotações sobre o filme de 1940, época em que se iniciava uma surda campanha contra Chaplin, suspeito de ser um dos comunas de Hollywood. Três anos antes, o diretor Alexander Korda sugeriu que Chaplin filmasse uma história sobre Adolf Hitler, tendo como motivo um erro de identidade, já que Hitler tinha o mesmo bigodinho do vagabundo Carlitos. Só mais tarde, pensando em o que filmar, é que Chaplin lembrou-se da sugestão, e foi assim que nasceu o argumento, que levou dois anos para ser escrito, e que fala do barbeiro judeu e humilde que toma o lugar de Hitler, banca o ditador nazista e, numa sequência antológica, gira o mapa-mundi na ponta dos pés como se tudo, terra e água, fossem dele. No final, vai além da fantasia e da ficção ao pronunciar seu maravilhoso discurso. Foi o mais longo tempo – dura seis minutos, e é Chaplin, e não Carlitos, quem se dirige aos judeus, aos povos oprimidos por Hitler, aos povos e governantes em geral, chamando-os para que participassem da luta contra o nazismo.
O discurso final de “O Grande Ditador” foi, em grande parte, responsável pela expulsão de Chaplin dos Estados Unidos, uma década mais tarde, quando o Governo americano decidiu que um mundo de tensões seria mais proveitoso do que o mundo da razão. Mas o apelo feito por Chaplin continua vigoroso como credo de um artista que acreditava que a consciência criadora jamais poderia ser silenciada. Então, vamos lá ao seu discurso.
“Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio...negros...brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo, não para seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades”.
“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens, levantou no mundo a muralha do ódio, e tem-nos feito marchar ao passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes a vida será de violência e tudo será perdido”.
“A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem, um apelo à fraternidade universal, à união de todos nós. Nesse mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora, milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas, vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: não desespereis. A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia...da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.
“Soldados! Não vos entregueis a esses brutais...que vos desprezam...que vos escravizam...que arregimentam as vossas vidas...que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como carne para canhão. Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar...os que não se fazem amar e os inumanos!”
“Soldados! Não batalheis pela escravidão. Lutai pela liberdade!. No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem, não de um homem só ou de um grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder, o poder de criar máquinas. O poder de criar a felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo, um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice”.
“É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim às ganâncias, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzem à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!
“Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para luz! Vamos entrando num mundo novo, um mundo melhor em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-iris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!
Uma cópia do discurso chapliniano em “O Grande Ditador” eu recebi no Natal de 1984 com votos de felicidades do publicitário e grande amigo Carlito Maia. Que Deus o tenha. É dele aquela frase criada quando Chaplin morreu num dia de Natal: “Deus não tinha companhia e então chamou Carlitos pra morar com ele.”

1 de fevereiro de 2008

FRASES E HISTÓRIAS II


Em 26 de janeiro li no “Estadão” o artigo do meu amigo Sérgio Augusto onde ele diz que aqueles que imaginam assistir filmes longos na telinha do aparelho celular podem esquecer. A moda não vai pegar. E nem pode. A propósito, o crítico carioca citou um videoclipe do diretor David Lynch (“Veludo Azul”, “O Homem Elefante”) descendo o pau no que está sendo considerado o mais badalado gadget eletrônico da Apple. O videoclipe de Lynch dura 30 segundos e pode ser encontrado no YouTube. Quem se interessar pode consultar. Lynch adverte: “Se você assiste a um filme num telefone, nem num trilhão de anos irá desfrutá-lo a contento. Você vai pensar que o desfrutou, mas foi engano seu. É muito triste ver alguém acreditar que se possa assistir a um filme na bosta de um telefone. Caia na real”.
Em resumo, aproveitando a bronca de Lynch, o autor do artigo afirma – e concordo – que seria mais um ataque a tudo aquilo que o cinema inventou até hoje em 113 anos de história, desde a chegada do som até inovações outras como o filme em cores, o cinemascope, o dolby, a terceira dimensão etc. “Uma série de fatores – afirma o jornalista Sérgio Augusto – praticamente acabou com as antigas salas de exibição, eliminando o ritual cinematográfico, a missa leiga do entretenimento de massa, a mais popular e universal curtição coletiva, substituída pelo comodismo televisivo, pela insularidade doméstica. Houve perdas e ganhos nessa reviravolta, parcialmente tecnológica, como houvera na passagem do silencioso para o sonoro. O videocassete foi um avanço. Com o advento dos televisores de plasma, com 40 polegadas ou mais, e maior nitidez das imagens, até os cinéfilos mais ortodoxos preferiram relaxar e aproveitar a farra dos DVDs”.
“Nas décadas passadas, algum cineasta tão consciente, purista e audacioso quanto Lynch poderia ter vindo a público recriminar quem aceitava ver filmes “na bosta de um televisor”, mas ninguém veio”, afirma o crítico, lembrando que quando surgiu o Cinemascope para tentar recuperar as platéias roubadas pela TV, diversos diretores extravasaram seu desagrado. Ele cita George Stevens (“Os Brutos Também Amam”) que, ao saber da novidade, o Cinemascope que surgiu na década de 50, disse: “Só é bom para filmar jibóias”. Também lembra Fritz Lang (“M, O Vampiro de Dusseldorf”), que sentenciou: “Só é bom para filmar cortejos fúnebres”. “Se não tivesse durado tão pouco, a moda da Terceira Dimensão teria sido execrada com a mesma intensidade”, sapeca o analista, garantindo que o cinema miniaturizado nos “smartphones” é um “deplorável capitis diminutio”.
David Lynch, na sua bronca em cima da possível adesão de Hollywood à novidade, diz que “se virar mania, nem “O Pequeno Polegar” e “O Incrível Homem Que Encolheu” ficarão bem na microtela de um celular”. O sarcástico Sérgio Augusto ainda encontrou espaço para brincar com o assunto em análise no seu artigo. Segundo ele, se a moda pegar, Hollywood vai propagar frases como “em breve, na palma de sua mão, “O Menor Espetáculo da Terra”. Se isso vier a ocorrer - na indústria cinematográfica tudo é possível – os sucessos do que outrora chamavam de cinema “serão filmes já no título coerentes com suas lilliputianas dimensões”, afirma o articulista. E, em tom de pura gozação, cita “A Pequena Ilusão”, “O Homem Que Sabia de Menos”, “Fellini Um e Meio”, “Os Fuzis de Navarone”, “A Pinguela do Rio Kway”, “Se Minha Kitchenette Falasse”, “Os Cinco Mandamentos”, “Baixa Sociedade”, “Essa Loura Vale Um Tostão”, “Os Três Samurais”, “Um Homem Chamado Pônei”, “O Pequeno Ditador”, “O Bote das Ilusões”, “Um Beco Chamado Pecado”.
Eu emendaria com “A Volta ao Mundo em 8 Dias”, “O Mansinho Dr. No”, “Adivinhe Quem Vem Para o Café”, “Os Dois Mosqueteiros”, “O Esfarrapado Mr.Deeds”, “Tempos Antigos”, “Apagões da Cidade”, “Uma Tarde na Ópera”, “ ...E o Vento Não Levou”, “O Morrinho dos Ventos Uivantes”, “Um Dedo Que Cai”, “Boca Profunda” e vai por aí. Quem tiver tempo pode imaginar novos títulos e oferecer aos magnatas de Hollywood que já devem estar maquinando o que fazer para agradar os que se atreverem a assistir filmes na telinha do celular.