Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
O material não segue nenhuma ordem, seja cronológica, seja de categoria ou qualquer outra. É apenas um registro digital de muitos anos de jornalismo.

19 de abril de 2008

Trinta anos... O MARGINAL

21.03.1975

“O Marginal”, que Dias Gomes transformou em argumento cinematográfico e que Carlos Manga dirigiu, para azar seu depois de um afastamento de 13 anos do cinema brasileiro, é um filme que, lamentávelmente, não escapa da ingenuidade. Excluídas as suas boas qualidades técnicas, resultados, principalmente, do esmero que Oswaldo de Oliveira aplica à fotografia, não há como perdoar uma obra tão ineficiente e tola em seu modo de desenvolver a história de Valdo, o marginal do título. Quem está sentado na poltrona, à espera de, no mínimo, um filme policial mais aplicado, recebe a chatice de um extenso, inexplicável, cru e ingênuo dramalhão onde Dias Gomes colocou bons punhados de tudo o que as telenovelas vendem diariamente.
Vejamos: há um homem, Valdo, que se transforma em assassino porque a sociedade o corrompe. Criança ainda, como o filme mostra em sucessivos flashbacks entre passado e presente, é internado num colégio, de onde foge. Já homem feito, ambiciona alcançar uma posição social e o “status” que lhe fora negado na infância. Trabalha numa boate onde conhece Beth, milionária enganadora de homens e com quem se envolve. Mas conhece também a vedete do rebolado, Leina. Entre uma e outra, decide ficar com ambas. Enquanto isso, começa a subir socialmente e vira dono de uma agência de automóveis. Abandonado por Beth, mata o marido dela, pega 14 anos de cadeia e nesse período de cana pode curtir todos os seus traumas. Ainda preso, é usado por Leina, que se casa com o marginal para alcançar fama e conquistar a TV. Aparece então uma criança que Leina diz ser filho de Valdo. Acreditando na história da mulher, ele decide se comportar bem para ganhar a liberdade condicional. Sai da prisão e vai dedicar-se a um trabalho honesto: chaveiro. É novamente enganado por Leina, fica sabendo que o filho não é seu, espanca a mulher, refugia-se na sua oficina e só sai de lá para enfrentar a polícia. E o resto é o resto.
Qualquer pessoa acostumada a assistir os dramalhões telenovelescos já percebe o que é “O Marginal” nas suas concepções de argumento. Mas não imagina que, num filme, Carlos Manga tenha utilizado de maneira tão pobre a linguagem cinematográfica. As noções mais elementares de ritmo e ação, planos, enquadramentos etc, parecem aplicados, nesta obra, por um cineasta amador e não por um Carlos Manga que merece as melhores referências e que é, neste caso, fatalmente traído: acabou sendo obrigado a trabalhar um argumento que não lhe deu as mínimas chances de realizar um filme mais realista e menos piegas, mais dramático e com menos cheiro de telenovelão.
Dessa incursão ingrata no dramalhão de TV, nem Tarcisio Meira, nem Darlene Glória ou outro qualquer outro ator, passando por um Anselmo Duarte preso a marcações e claramente desinteressado, escapam para um mínimo perdão. É evidente que, sem culpa pela fragilidade com que foram construídos os personagens, os atores de esforçam, mas a tentativa deles é inócua porque não podem enriquecer figuras que nasceram para desfilar durante meses a fio suas caras na televisão, o que, por si só, já é desgastante para eles quando vão fazer cinema. Para o público a que se dirige, “O Marginal” não muda nada. Tanto faz ver um Albertinho Limonta, um Nino ou um Valdo. É tudo igual.

17 de abril de 2008

Trinta anos... DO HUMOR À INGENUIDADE DA CHANCHADA

31.10.1975

Um saudável desfile do passado. Rever os velhos musicais da Atlântida, realizados na década de 50, é como acreditar que, daqueles anos para cá, a ingenuidade e o sonho não morreram. É o mesmo que crer que o espírito do povo brasileiro continuou inalterado entre ironias e fanfarronices. É como sonhar que, de lá para cá, não tivemos nenhum outro problema mais grave, social, político ou econômico, capaz de aniquilar essa nossa característica natural de transformar tudo em pilhéria.
É saltar um quarto de século a retornar a uma época em que não se falava em poluição, não se cometiam tantos crimes e seqüestros, não havia Watergate nem se pensava em contratos de risco, o Corinthians era a alegria do povo, o Carnaval tinha o cheiro do lança perfume, as crianças podiam brincar nas calçadas sem medo de motoristas psicopatas, os pássaros ainda cantavam – hoje com a poluição do ar eles tossem – e o povo ia aos cinemas, em filas, para rir com um Oscarito, para ouvir Emilinha Borba e Marlene, atingido pelos inúmeros apelos que a ingenuidade dos filmes musicais de então possuíam.
Hoje, canta-se menos e pouco se ri. Até as piadas estão desaparecendo. E o cinema, como se sabe, descambou firme para a violência e o erotismo. Perdemos a inocência. E até nos sentimos frustrados com a oportunidade de, através de uma seleção de velhos filmes, rememorar um passado que, inegavelmente, nos permitia ter melhores satisfações. Talvez esteja aí o maior mérito de “Assim Era a Atlântida”, antologia que reúne trechos de 33 obras produzidas nos estúdios daquela companhia, no Rio, desde 1941 até 1962. Um documento precioso por si só, sem contar o fator da nostalgia, onde certamente está apoiado o trabalho do diretor Carlos Manga e do seu colaborador, Sílvio de Abreu.
Não importa se “Assim Era a Atlântida” foi elaborado segundo o modelo norte-americano de “Era Uma Vez em Hollywood”, a seleção dos velhos musicais da Metro. O que importa é que, entre as raras obras seletivas existentes no cinema brasileiro, foi montada exatamente aquela que mais fazia falta: a reunião, em 105 minutos, da contagiante alegria que a chanchada – então um termo carinhoso – espalhava entre um público que consumia o cinema nacional e que via, refletidas nas gags ingênuas de Oscarito e Grande Otelo, nas canções de Jorge Goulart, nas coreografias simplórias de Carlos Manga e Watson Macedo, nos bailados de Eliana, nos beicinhos de Fada Santoro, no heroísmo de Anselmo Duarte, nos galanteios de Cyll Farney. Na inocente maldade de José Lewgoy ou na sensualidade de Norma Benguel, imagens que faziam parte de um cotidiano feliz, espirituoso, fruto de uma época em que não se tinha vergonha de rir ou chorar.
Os que puderam acompanhar o desenvolvimento das produções da Atlântida têm aí uma excelente oportunidade de curtir o que se convencionou chamar de nostálgico. Os que não viveram aqueles anos, a nova geração que nasceu sob o estigma das guerras, da violência e de um cinema que é a imagem de sociedades doentes, podem verificar o que a chanchada representou em termos de comunicação com o público e como espelho de um povo que sofreu grandes mudanças em seu comportamento.
A chanchada foi um fenômeno que não pode ser dissociado da história do cinema brasileiro. Não pode ser ignorada, mesmo pelos céticos que hoje, diante de um Gene Kelly cantando na chuva, ou se uma Eliana com trajes de baiana dançando num musical qualquer, julgam o cinema do passado como alguma coisa primária, infantil, sem imaginação. A seleção que Carlos Manga e Sílvio de Abreu – que coordenou as pesquisas – realizaram, bebendo inspiração no modelo hollywoodiano, é um documento precioso, uma obra que, felizmente, foi idealizada e elaborada por profissionais que estão no ramo e tomaram parte ativa no fenômeno do filme musical, ou da comédia musical, ou do drama musical brasileiro.
Se existem observações de ordem técnica a serem feitas, são poucas. Talvez os trechos demasiadamente longos dos filmes apresentados – 27 chanchadas e 6 dramas -, o que é justificável: Manga e Silvio de Abreu não tiveram muito material para montar a antologia, já que boa parte dos negativos dos filmes da Atlântida foi destruída por um incêndio em 1952 e uma inundação em 1971. Talvez, também, alguma falta de imaginação dos realizadores no caso das entrevistas inseridas entre os trechos das comédias. Os depoimentos de Fada Santoro, Eliana, Grande Otelo – que conclui o filme com uma homenagem a Oscarito, o maior ídolo no elenco da Atlântida -, Cyll Farney, Anselmo Duarte, Inalda, Adelaide Chiozzo, José Lewgoy e Norma Benguel são tomados, com exceção ao de Otelo, diante dos já conhecidos cartões postais da paisagem carioca, e poderiam ser mais originais. Esses pequenos equívocos pouco significam diante do conteúdo das obras selecionadas, seus números musicais e uma montagem que valoriza os melhores momentos de cada chanchada, tornando o documentário dinâmico, tratado com escrúpulo.. Além disso, Carlos Manga evitou qualquer visão crítica sobre o gênero, permitindo apenas sua apresentação como o cinema contagiante de uma época. Manteve, inclusive, alguns trechos irônicos que se interligam com o presente, como aquele onde Oscarito diz: “Essa política nacional vai mal”. Depois de tudo, o público que se diverte com as estripulias chanchadescas só lamenta que a antologia não seja colorida.

Trinta anos... A GUERRA DOS PELADOS

20/9/1971

Mais lírico do que trágico, mais contemplativo do que emotivo, o segundo filme do diretor paranaense Sílvio Back tenta visualizar as conseqüências da expulsão de posseiros de suas terras, no interior de Santa Catarina, em 1912, por “coronéis” com grandes interesses na implantação de uma ferrovia por grupos estrangeiros. Em troca do desalojamento dos jagunços, eles teriam prioridade para explorar as riquezas das terras roubadas de famílias pobres e humildes.
O episódio ficou conhecido como Guerra do Contestado e desenvolveu-se entre 1912 e 1916 com violentos conflitos entre os “pelados” – os jagunços que rasparam seus cabelos e optaram pela luta armada na tentativa de conservar suas terras – e os “peludos”, representados pelo coronelismo, os homens poderosos de grandes melenas, que tinham como grande arma o auxílio das forças governamentais.
Entre posseiros atormentados e o poder desenrola-se um drama pontilhado pelo messianismo, pelo fanatismo religioso e por seqüências nas quais Sílvio Back tenta certos achados preciosistas. Se a tragédia foi sanguinolenta, apesar de quase ignorada nas páginas da História oficial, o filme só empolga razoavelmente. É o resultado do capricho excessivo do realizador, preocupado mais em fixar a beleza inegável das paisagens e em enriquecer a forma e menos o conteúdo sobre esta tragédia popular do nosso século.
Mas Sílvio Back consegue muito com sua habilidade. Para o espectador, ficam marcadas as passagens cheias de lirismo evocadas num cenário belíssimo que a fotografia de Oswaldo de Oliveira valoriza com maestria. Para o cinema nacional foi a segunda boa contribuição de Back, acentuada por elementos de fácil identificação: a segurança com que dirige, o capricho técnico, a linguagem simples, a reconstituição de época e a escolha de intérpretes bem ajustados aos personagens. De Jofre Soares, o Pai Velho, místico que reúne em torno de si os “pelados”, até Emmanuel Cavalcanti, Zózimo Bulbul, Jorge Karan e Átila Iório, líderes do reduto onde lutam contra os opressores, todos valorizam a obra. Se o tempo apagou os fatos das páginas da História, Sílvio Back se incumbe de revivê-los neste filme que, embora não se aprofunde politicamente na odisséia dos “pelados”, tem valores significativos como resgate da disputa entre os poderosos “coronéis” e os pacatos lavradores convertidos em guerrilheiros numa luta de vida ou morte.

Trinta anos... MACUNAÍMA

9/12/1969

O público engole “Macunaíma” da mesma maneira que o personagem é engolido pelo Brasil, segundo a definição dada pelo diretor Joaquim Pedro de Andrade: “um brasileiro comido pelo Brasil”. Ao espectador não restam dúvidas: se ele viu outros filmes nacionais este ano (1969), e se repassar a qualidade dos demais, chegará tranquilamente à conclusão de que no cinema brasileiro não há nada de melhor do que o “Macunaíma” de Joaquim Pedro.
Na difícil tarefa de adaptar o romance de Mário de Andrade, escrito há mais de 40 anos, o diretor obteve um resultado que supera as expectativas, elaborando um filme de nível técnico internacional e visualizando o nascimento, vida e morte deste personagem extremamente absurdo, grotesco, caricatural, cômico, erótico e às vezes até banal, um tipo tido como “o retrato do brasileiro de todos os tempos e de todas as regiões”.
A reação do espectador diante deste filma barroco, cafona e tropicalista é a melhor possível. Ele ri das situações, dos diálogos, dos personagens e de tudo o que está à volta de Macunaíma, desde que ele nasce preto (Grande Otelo) até sua morte, autoconsumido. Entre nascimento e morte, uma vida marcada pelos desajustes, pelo sexo, pelas trapalhadas, pela fauna das selvas e pela selva da cidade grande, o Rio, no caso, onde os mais fortes comem os mais fracos, onde quem pode mais chora menos. A fantasia de Mário de Andrade adquire, no romance e no cinema, um tom próprio, absurdo e irônico, que coloca em questão os problemas brasileiros de moral, conceitos, virtudes e vícios, saltando aos olhos como um painel rico em detalhes e onde não falta a antropofagia, forma do consumo que os índios inventaram ao devorar o bispo Sardinha e que Joaquim Pedro usa através de um banquete cruel patrocinado pelo antropófago-mor, o gigante Wenceslau (Jardel Filho).
Desse quadro de aventuras sarcásticas, ironias, sexo e humor é que Joaquim Pedro constrói o seu filme, deliberadamente hippie e rústico, gostosamente chanchadesco, ante o qual a platéia se diverte porque sente, desde o início, o grande poder de comunicação da obra. O mérito de Joaquim Pedro pela realização desta obra deve ser dividido com Grande Otelo, Paulo José e Jardel Filho, representando o Macunaíma preto, o Macunaíma branco e o gigante mau caráter, respectivamente, impondo aos seus personagens o toque caricatural necessário para enriquecer esta comédia de situações exageradamente ajustadas ao espírito do brasileiro contemporâneo. Um retrato traçado há 40 anos que adquire vida numa obra cinematográfica ousada, provocante por suas cafonices e por sua grossura proposital construída em cima do burlesco, do tropicalismo e do antropofágico.

16 de abril de 2008

Trinta anos... A TRAGÉDIA DOS CÁRCERES E UM GRITO PELAS LIBERDADES

21/06/1984

“Memórias do Cárcere”, o maior acontecimento do cinema brasileiro este ano, já está em julgamento junto aos espectadores. E é quase certo que o filme de Nelson Pereira dos Santos, adaptação excepcional do romance homônimo de Graciliano Ramos, recupere o prestígio que o cinema nacional vem perdendo gradualmente junto ao público, já que a maioria crê que não existe nada mais além das indefectíveis chanchadas, ou pornochanchadas, e dos pornodramas de sexo explícito.
Existe, mas é raro, um filme absorver tanto e emocionar tantas pessoas como tem ocorrido com “Memórias”, exibido numa única sala e que o espectador pode ver fazendo reservas antecipadas de ingressos com 48 horas de antecedência do dia e da sessão que escolher. A obra de Nelson Pereira dos Santos, que mais uma vez se debruça sobre a literatura de Graciliano Ramos – a primeira foi em 63, quando adaptou “Vidas Secas” – já se justificaria pelo fato de resgatar, em imagens, uma das peças mais poderosas da literatura brasileira, não fosse também o fato de ter levado todas as emoções das memórias do escritor até o Festival de Cannes, este ano, vencendo o disputadíssimo prêmio da crítica internacional que, para muitos, significa mais importância do que a própria Palma de Ouro.
Volta-se, aí, ao Brasil do final de 1934, quando as diferentes tendências da esquerda tentaram unir forças para impedir o avanço do fascismo, representado pela Ação Integralista Brasileira e as indecisões do governo de Getúlio Vargas. O movimento culminou na criação da Aliança Nacional Libertadora, lançada em março de 35, formado por adeptos recrutados nas classes médias urbanas, especialmente militares, intelectuais, profissionais liberais e estudantes. Comunistas, socialistas, católicos, positivistas e democratas de vários Partidos, no entanto, viram a sede da ANL ser fechada menos de quatro meses depois por força de um decreto governamental de julho de 35. Em novembro, Luís Carlos Prestes lidera o levante contra os quartéis em Natal, Recife e Rio de Janeiro. O Exército sufoca. Daí em diante vem a repressão desencadeada contra todos os suspeitos de colaboração com a extinta ANL, suspendem-se as garantias individuais de todos os cidadãos. Um deles: o escritor Graciliano Ramos, que em março de 36 ocupava o cargo público de diretor de Instrução do Estado de Alagoas. Preso, ele é conduzido à longa e tormentosa viagem que descreve nas memórias dos cárceres onde esteve preso, sem acusação ou culpa formada, durante 10 meses e 10 dias. Graciliano, no filme interpretado vigorosamente por Carlos Vereza, morreu em 20 de março de 1953. O romance – se é que se pode chamar de romance – só foi publicado depois de sua morte.
Um relato cruel, humano, emotivo, tenso e emocionante onde estão citados nada menos do que 236 personagens que Nelson Pereira, na adaptação, reduziu para 103, sem contar 700 figurantes. Três horas e 7 minutos de duração que jamais cansam o espectador, um bilhão e 50 milhões de cruzeiros gastos na produção e campanha promocional, e a expectativa de que estará pago assim que atingir um milhão de pessoas, o que não será difícil e pode ocorrer bem antes dos dois anos previstos pela Embrafilme, tamanha a expectativa do público em relação à obra.
“O cárcere, em meu filme, é uma metáfora da sociedade brasileira. No espaço exíguo da prisão a dinâmica de cada um é mais clara: a classe média militar, o jovem, a mulher, o negro, o nordestino, o sulista. O encontro com o prisioneiro comum, o ladrão, o assaltante, o homossexual. Graciliano registrou tudo isso, lutando contra os próprios preconceitos, e conseguiu nos deixar um testamento generoso, aberto. Gostaria de transmitir, como era o desejo dele, a sensação de liberdade, sair da cadeia das relações sociais e políticas que aprisionam o povo brasileiro”.
O depoimento de Nelson Pereira é também uma referência a uma das frases de Graciliano no romance: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda podemos nos mexer”.
A primeira idéia de adaptar “Memórias do Cárcere” nasceu quando Nelson Pereira filmou “Vidas Secas” e manteve uma relação direta com o trabalho do escritor. E porque, em 63, o Brasil estava mergulhado num clima de violência política e institucional. “Memórias” contava a mesma história em outra época, a realidade se repetia. Mas o Brasil dos anos 60 não dava condições a nenhum cineasta, por mais ousado, de levar adiante um projeto de adaptação que Nelson Pereira só retomou em 1981, sem nenhum problema político de censura.
“Qualquer significado político, no filme, deve ser extraído pelo próprio espectador e, assim, estou sendo fiel ao pensamento de Graciliano Ramos. O livro, como o filme, não é político. Trata da condição humana de forma universal”, afirma Nelson Pereira. No filme, apenas alguns personagens conservam os nomes reais citados pelo escritor: Heloísa (Glória Pires), a mulher ciumenta que depois se transforma e luta pela liberdade do marido; doutor Sobral, Cubano e o Capitão Lobo, figuras que conviveram com Graciliano e que estão representadas por atores por atores como Jofre Soares, José Dumont (Mário Pinto, um comunista), Nildo Parente como Emanuel, preso político que na cadeia se comportava como alto burguês, Wilson Grey fazendo Gaúcho, marginal carcomido mas cheio de humanismo. Em participações especiais aparecem Paulo Porto, Nelson Dantas, Monique Lafont, Fábio Sabag, André Villon e Silvio de Abreu. A primeira revolução do cinema brasileiro ocorreu com a eclosão do Cinema Novo. A segunda, como afirmou um crítico francês, começa agora com “Memórias do Cárcere”.

15 de abril de 2008

Trinta anos... A VELHA ARGENTINA

Nós, “los hermanos”, sempre consideramos que os argentinos são os mais desgraçados concorrentes do nosso futebol, no bom sentido e sem ofensas. Depois começaram a aparecer as rixas em comércio, Mercosul, política, fronteiras, os apoios do casal Kirchner ao “hermano” Hugo Chaves, a situação do povão de lá, que agora nem pode mais gozar o prazer de um bom churrasco porque anda faltando boi e, consequentemente, faltando carne. A gloriosa Argentina está virando uma zorra, o que é uma pena porque um dos prazeres do brasileiro sempre foi visitar Buenos Aires e curtir o clima europeu da belíssima capital com seus cafés, livrarias, avenidas e tudo o mais que a cidade nos oferece, sem contar os outros locais freqüentados mais pelos ricos e novos ricos brasileiros que tomam porres com a atual cotação do dólar. Mas, parece, não anda mudando pouca coisa na vida argentina, basta ler, como li no início desta semana, no “Estadão”, uma nota de vinte e uma linhas informando – notícia da agência France Presse – que um deputado de nome Lorenzo Pepe pediu que seja proibida a veiculação, pela televisão, de um episódio do desenho “Os Simpsons”. Com certeza, o tal de Pepe deve ser um daqueles fanáticos peronistas que ainda acreditam que os fantasmas de Juan Domingo Perón e da então primeira dama Evita – nada a ver com a Madona no musical do cinema – ainda voam sobre a calle Florida e arredores, assombrando os que atacam de uma forma ou outra os seus nomes santificados. Coisas assim nos fazem lembrar certos episódios tipicamente nacionais, isto é, brasileiros, e que lembram também as épocas negras em que a Censura baixou firme por aqui só porque diziam que o pescoço do marechal de plantão era curto, o outro que apareceu depois nunca havia lido nenhum livro e, portanto, pra eles, censurar era coisa tão corriqueira como acreditou o nosso companheiro jornalista que passou seis meses em cana porque disse, na sua crônica, que a cabeça do Duque de Caxias, a estátua dele em frente à velha Rodoviária, era um depositório dos cocos dos pombos.
O nosso amigo argentino Lorenzo Pepe pediu a censura ao desenho dos Simpsons alegando que um dos personagens chama Juan Domingo Perón de ditador. Perón foi presidente argentino três vezes, entre 1946 e 1974, e seu carisma entre o povo argentino é comparado aqui ao nosso getulismo, ademarismo, malufismo e outros tantos ismos que temos na nossa política. Convenhamos: esse deputado deve ser um debilóide, porque acha que ninguém, menos algum argentino, acredita que Perón foi um ditador que encabeçou o regime militar, mandou centenas pro espaço, faturou milhões em cima dos alemães que acolheu depois do fim da Segunda Guerra e só ficou no procênio por causa da aura de sua mulher, Evita, que bancou a barra pesada na época.
A nota informa que não foi a primeira vez que o desenho dos Simpsons, conhecidos em todo o mundo, provocam atos desse tipo, reacionários e de indignação. Em 2002, um episódio do seriado que fazia piadas com o Brasil, mostrando um retrato negativo e estereotipado do País, também entrou na listinha dos que o consideraram ofensivo a nós, brasileiros, como se isso fosse afetar a nossa economia, manchar o Cristo Redentor, passar imagens fajutas da Bahia ou de São Paulo, informar que Aleijadinho era um Michelangelo tupiniquim e que Niemeyer copiou o plano diretor de Brasília. Ora, será que os argentinos não têm nada mais que os precupem senão ler besteiras desse tipo?. Será que a economia por lá anda às mil maravilhas, a política idem, o povão também?.
O fato é que, passados tantos e tantos anos depois das censuras religiosas e políticas, do nazismo, do fascismo, do comunismo, do famigerado macartismo norte-americano que acabou com a carreira de tanta gente competente de todas as Artes, desde o cinema até a literatura, ainda tem gente que sonha com os velhos tempos do “Farenheit 451” – lembram? – o filme do diretor François Truffaut (1967), futurista, que mostrou como o governo totalitário proibia e mandava queimar qualquer exemplar de livro porque considerava o material escrito como ameaça à segurança pública.
Para nossa sorte, tanto o cinema quanto as outras Artes souberam driblar a ofensiva dos censores que existem desde que inventaram as prostitutas. E não serão os Simpsons, com suas piadinhas, que irão derrubar repúblicas ou ditaduras, como pensa o deputado argentino. Se ele acha que é o guardião da moralidade, é porque nunca leu nada sobre os velhos tempos. Cinema, teatro, música, histórias em quadrinhos, os gibis as velhas guardas, foram sempre alvos de manifestações reacionárias. Havia sempre um maldito espião achando que por trás das tiras dos jornais tinha um comunista comedor de criancinhas pronto para o bote no capitalismo..E a merda se espalhava como uma descarga de preconceitos inaceitáveis. No álbum “Histórias em Quadrinhos e Comunicação de Massa”, editado aqui em São Paulo por ocasião do Simpósio Internacional promovido pelo MASP e Escola Panamericana da Artes, em 1970, ou 1969, nem lembro mais, , já se dizia que “desde a sua criação, os comics tinham sido objetos de numerosos ataques”. Os quadrinhos sugiram no século 15, os desenhos animados vieram muitos anos depois. Mas os quadrinhos, desde antes da primeira guerra, foram acusados de semear desrespeito e insubordinação “no espírito das crianças pela glorificação de moleques atrevidos e anarquistas como o “Yellow Kid” ou “Os Sobrinhos do Capitão”, e de representar para seus jovens leitores uma perda de tempo e de atenção”. A censura americana fez com que alguns jornais importantes do país, como o “Boston Herald”, cancelassem as suas páginas de historietas, que só voltaram porque os leitores exigiram. É que, com menos dinheiro nos cofres por causa da queda nas tiragens, os donos entenderam que americano começava a ler jornais pelas páginas das historietas, e nunca pela política, cultura, economia ou o que fosse. Aliás, é o que faço até hoje: sem ler as tiras diárias de alguns personagens tipo “ Sargento Zero” ou “Calvin”, começo a relembrar os velhos tempos em que se liam os gibis de Mandrake, Fantasma, Tarzan, Nyoka, Jim das Selvas, Roy Rogers, Zorro e outros tantos nomes que povoaram a nossa imaginação.
O diabo é que, depois de guerra e com o aumento de deliquência juvenil, os ataques às histórias em quadrinhos aumentaram. No álbum, diz-se que, “acusando-a de solapar a moral da juventude, psicólogos, pedagogos e demagogos de todas as facções políticas prepararam contra as histórias em quadrinhos um assalto em massa que culminou em 1954 com a publicação do livro “A Sedução dos Inocentes”, do dr. Frederic Wertham. .Ele, servindo-se de exemplos cuidadosamente escolhidos – informa o álbum - , de desenhos truncados e de algumas vezes verdadeiras falsificações, o bom doutor, psiquiatra por profissão, procurou demonstrar com uma generalização abusiva que “esses comics, culpados de engendrar todos os pecados e vícios da terra – inclusive alguns que acreditávamos desaparecidos depois da destruição de Sodoma e Gomorra – eram a fonte de todos os nossos problemas”.
Na semana passada, lendo um artigo de Sérgio Augusto no “Estadão”, intitulado”Quando os Gibis Conheceram o Fogo da Inquisição”, comentando o livro “The Ten-Cent Plague, de David Hajdu, ele se refere ao ilustre dr. Frederic Wertham como o sujeito que entrou para as histórias em quadrinhos “como um vilão mais temido que Lex Luthor e o Dr.Silvana”. Lembram deles?. Luthor, o arquiinimigo do Super-Homem, Silvana o maquiavélico inimigo do Capitão Marvel., Wertham, diz o artigo, combateu implacavelmente todos os super-heróis do seu tempo, e não foram poucos. Por isso levou para o cemitério o epitáfio de “o McCarthy dos quadrinhos”, lembrando sempre que Joseph McCarthy foi o carrasco na caça aos comunistas na América e atolou Hollywood de delatores. Agora, como que copiando os nefastos exemplos dos dois, Wertham e McCarthy, o Pepe argentino quer censurar Simpsons e companhia. Logo vai implicar com Branca de Neve e os Sete Anões alegando que se trata de uma história de perversões sexuais.

14 de abril de 2008

TRINTA ANOS DE CINEMA BRASILEIRO

Sem qualquer pretensão didática ou o que seja, inicio hoje uma republicação das críticas que publiquei na “Folha de S.Paulo” entre o final dos anos 60 e o final dos anos 80, ou seja, mais ou menos 30 anos assistindo filmes ótimos, bons, regulares, mais ou menos e péssimos, e os péssimos botei pra fora desta minha modesta contribuição aos que precisam de informações sobre um período que, se foi muito bom, também foi muito ruim, e as gerações mais velhas devem saber quais as razões, chumbo grosso pra cima da gente, cineastas, artistas, jornalistas etc etc etc. Mas estou colocando no blog as criticas da forma como foram publicadas na “Folha”, sem modificações. Espero que elas sirvam como uma fonte de consulta ao pessoal que está começando as carreiras em Jornalismo, Comunicação, Relações Públicas, Publicidade e todas as outras áreas sobre as quais o cinema teve e continua tendo uma decisiva influência. Espero que tirem bom proveito de tantas e tantas linhas escritas em quase 30 anos escrevendo sobre um cinema que sempre procurei defender, quando bom, mas sempre critiquei, quando ruim. E vamos lá.

A DISCUSSÃO DA VIOLÊNCIA

“Quando a morte não incomoda, a existência perde importância e sentido. Quando o sangue não horroriza, o sangue corre. Quando as almas endurecem e se acomodam à brutalidade, só uma brutalidade gigantesca as despertará. E violência é empurrada por uma poderosa inércia.Evaporou-se o nosso senso trágico, perdemos a noção do amor à vida. Está acionado apenas o espírito bufo. Sendo assim, gargalhemos com esta macabra pilhéria que acabamos de pregar nos autores do “Livro dos Recordes” e dos compêndios de Geografia: a verdadeira Chicago está aqui”.
O trecho é do comentário de Alberto Dines, “Chicago”, publicado na quinta-feira última na “Folha”, página dois. Repito, para quem não leu, porque ele se liga intimamente aos atuais acontecimentos – os crimes do Esquadrão da Morte na Baixada Fluminense, a recente prisão e soltura do delegado Sergio Fleury, em São Paulo, a violência praticada contra Milton Morais em Guarulhos – que ampliam a atualidade do filme “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco.
Cinema e realidade se entrelaçam. Lemos nos jornais, hoje, notícias de que só entre janeiro e fevereiro deste ano foram encontrados, crivados de balas e mutilados, setenta e quatro cadáveres que teriam sido vítimas do ramo carioca do Esquadrão.Os fatos, portanto, conferem a “Lúcio Flávio” um espaço maior como obra que resume, como cinema, aquele compromisso quase sempre renegado de manipular a realidade sob a qual vivemos e utiliza-la como exemplos.
Mais que Mineirinho, Paraíba ou Perpétuo, Lúcio Flávio Lírio foi quem praticamente abriu toda a intensa polêmica que envolve a organização parapolicial, o Esquadrão, que estabeleceu regras e modelos próprios para sua justiça. Ninguém ignora sua existência e os esforços de muitas autoridades para denunciar a organização e, ao mesmo tempo, colocar um ponto final nas suas arbitrariedades, que normalmente enchem cemitérios. Crimes mantidos impunes sob a proteção de uma lei que já virou galhofa. Ninguém acredita. Justiça, hoje, é termo que perde lugar nos dicionários. O procurador Hélio Bicudo tem o seu ótimo testemunho, “Meu Depoimento Sobre o Esquadrão da Morte” (editado pela Paz e Terra) e quem leu teve a chance de verificar até que ponto chega a ação desse (ou desses) grupo parapolicial quando coloca, em, seu index, o nome de determinado marginal.
A obra de Babenco toma o tema como ponto de referência para discutir a atual problemática do crescimento da violência na sociedade brasileira. E o faz com sangue nas veias. O tema poderia ser analisado através de qualquer outro marginal além de Lúcio Flávio Vilar Lírio, assassinado em agosto de 1975 numa cela da penitenciária Lemos de Brito, no Rio, com 19 facadas. Babenco, entretanto, já tinha boa parte do trabalho feita pelo escritor e jornalista José Louzeiro, autor do livro em que o filme é baseado e que, em 75, lançando sua melhor obra, o fez provocando impacto porque narrava exatamente a vida de um bandido que ousara denunciara existência do grupo de eliminações sumárias. O livro já é um roteiro, composto de farto material colhido por Louzeiro, que entrevistou Lúcio Flávio várias vezes.
Não se pode duvidar, em nenhum instante, das qualidades formais do filme.Hábil e sensível aos momentos da nossa realidade, Babenco construiu um espetáculo cru varrido o tempo todo pelo jogo entre policiais e marginais e por uma violência que as imagens procuram salientar na tentativa de especular sobre assuntos que abrangem a tortura física, a corrupção, a falência da Justiça, as implacáveis perseguições e a brutalidade sem freios que campeia dentro da sociedade brasileira e que, ainda lembrando o comentário de Alberto Dines, nos dá a impressão de estarmos vivendo na Alemanha dos anos 30, isto é, amortecidos. As propostas da obra podem ser discutíveis. Não podem, porém, ser ignoradas. Usando o estilo dos policiais americanos dos anos 40, transposto para o nosso ambiente de violência e asfixia, Babenco consegue um casamento ideal entre o espetáculo e a denúncia num filme onde procura refletir as condições em que Lucio Flávio foi transformado numa das mais famosas vítimas do Esquadrão. Um “herói” de boa árvore genealógica, classe média, estudado, boa pinta, poeta nas horas vagas, consciente do seu papel, enredado num esquema do qual nunca pôde escapar. Lúcio Flávio chegou ao fim do seu ciclo de crimes com o testemunho do que haviam feito dele: um marginal vilipendiado, torturado, humilhado, o otário que, para os policiais – o delegado Moretti e seu comparsa Bechara, no filme desempenhados por Paulo César Pereio e Ivã Cândido – não passava de um instrumento através do qual, impunes, os corruptores realizavam suas transações, assaltos, tráfico, roubos , etc,
O impacto do livro de Louzeiro se nivela ao que Babenco , com sensibilidade, estabeleceu nas imagens. No plano também de outra obra importante do atual cinema brasileiro de enganamento e de propostas, “Barra Pesada”, de Reginaldo Faria, “Lúcio Flávio” é uma sucessão de fatos reais envolvidos por certas concessões que o diretor e Louzeiro foram obrigados a fazer para que o filme não tivesse, na Censura, seus mais vigorosos momentos (os devaneios amorosos entre o personagem e Janice, sua amante, o pesadelo do marginal, na cela, ao sonhar com sua morte, o instante em que é obrigado, como ser humano, a descer à degradação total sob os efeitos da tortura) impedidos de atingirem um público que poucas vezes, diante de filmes nacionais, pôde refletir, perplexo, acerca de uma determinada realidade.
Exceção a esses “presentes” aos censores – os policiais federais mostrados como exemplos de humanismo e bondade, os nomes fictícios outorgados aos corruptores de Lúcio Flávio, os letreiros justificando a posterior punição aplicada aos policiais envolvidos no caso – o filme só tem o equívoco de lançar o marginal aos olhos da platéia como um bandido qualquer, já que Babenco não se preocupou em defini-lo melhor a partir de certas origens que, como o próprio diretor afirma, poderiam te-lo levado à Medicina, à Engenharia ou a outra profissão qualquer que não a marginalidade.
Uma obra forte e vigorosa, construída com simplicidade, linearmente, que se repete em vários momentos mas é toda ela tocada por um realismo trágico do qual podemos extrair lições. Afinal, embora fale abertamente – quase sempre com ousadia e coragem, algumas vezes com certa timidez – sobre os métodos do Esquadrão e o processo de envolvimento dos policiais na proteção ao marginal para proveito próprio, o filme não pode ser discutido apenas por essa ótica. Deve, isto sim, ampliar as discussões sobre a violência em todos os níveis. Afinal, não é só o Esquadrão o responsável pela brutalidade odiosa que se alastra sobre nossas cebeças, e o recente caso do jornalista Milton Morais é mais do que suficiente para servir como prova de que estamos afundando em poças de sangue.
9/03/1978

9 de abril de 2008

O CINEMA E A RECESSÃO

Muito bem, os norte-americanos pegam gripe e nós, aqui, esperamos os momentos de começar a espirrar, porque acabamos infectados pela gripe estadunidense que parece se alastrar a cada dia, com o tal de Fed anunciando que a crise econômica por lá não é coisa de nenhum filme de Frank Capra e que nem o presidente Roosevelt, o anjo da guarda do “New Deal”, se vivo, conseguiria salvar as vítimas do “crash” de 2008, igual ou pior daquele que arruinou a economia dos Estados Unidos nos anos 29 e 30. “New Deal” significava novos tempos para os norte-americanos, e o slogan pegou todos eles de calças curtas – os que ainda vestiam calças – e, se não ficarmos de olho, o nosso tal de Lula vai querer imitar a história, se é que já não imitou criando as tais de Bolsas pra todos os cantos do país. Só que leio hoje (7) que está morrendo gente aos montes por causa das chuvas no Nordeste, tem mais gente ainda precisando de socorro médico e aquele socorro do nosso Big Brother ainda não apareceu, como não surgiu no caso da dengue no Rio e certamente não vai aparecer caso a epidemia do mosquito se espalhe pelo resto do país. Ficaremos reféns de um maldito mosquitinho que estaria liquidado se entrasse nas latrinas usadas por deputados e senadores, em Brasília. Que tal a sugestão?. Afinal, são todos sanguessugas, ou não?.Neste final de semana, no “Estadão”, João Ubaldo Ribeiro esculhambou os políticos cariocas que não estão nem aí para o caos na saúde, e vejam que a dengue não pega apenas favelados mas pegou, também, o nosso medalhista olímpico Diego Hipólito, que é capaz de ficar fora das disputas na China por causa de um mosquito ordinário, fruto da incompetência dos políticos – também incompetentes – que prolifera com a rapidez que eles, os políticos, deveriam dedicar à aprovação de todos os programas de saúde para a população deste país, principalmente aquela que o nosso Big Brother diz acudir com bolsas, sacolas, mochilas e etc. Agora, ainda, estou ouvindo no rádio o Lula dizer que o Brasil será um grande construtor de navios dentro se poucos anos. E me pergunto: quem vai trabalhar nos estaleiros se tem dengue, febre amarela e, quem sabe, outras doenças que virão por aí?.O profeta de nove dedos dizia, recentemente, que o sistema de saúde brasileiro é um dos melhores do mundo. Sorte dele, que nunca precisou entrar numa fila do INSS.
Lula, há pouco, falando sobre a provável recessão na economia dos Estados Unidos, comparou-se ao então presidente Roosevelt, e aí, cá pra nós, o discurso entornou. Acho que Lula nunca leu nada sobre o pior momento econômico norte-americano, e nem sabe que Roosevelt, na sua cadeira de rodas, levantou o país inteiro num movimento que não distribuía nem dentaduras nem bolsas, mas esperanças pros famigerados cidadãos que, vimos, por exemplo, no clássico “As Vinhas da Ira” (1940), de John Ford. Agora, ligando o cinema com a recessão, é bom lembrar que nos anos 30, Hollywood soube, melhor que ninguém, de que forma manipular a baderna econômica do país, primeiro produzindo os filmes cantados, depois com os cem por cento falados, aqueles que fascinavam um público ansioso por esquecer, nas salas escuras, os seus problemas de sobrevivência material.
Num artigo em que discorria sobre a crise daquela época, o jornal “The New York Times” afirmava que os banqueiros logo perceberam o importante papel de Hollywood como antídoto contra o pessimismo dos norte-americanos. O Chase Manhattan Bank, do grupo Rockfeller, e a Atlas Corporation, do grupo Morgan, dominavam os oito maiores estúdios E os puritanos deram o troco, porque o atrativo dos cinemas, com filmes de todos os tipos, não era nada legal. Ao contrário, era a total indecência, daí tem surgido o tal de Código Hays, aquele que, a pretexto de vigiar a moralidade pública, queria mesmo era controlar o tratamento dos problemas sociais através do cinema.
A produção de filmes nos Estados Unidos, desde o início da crise que gerou milhões de desempregados, foi dirigida por banqueiros puritanos. Isso explica o fato de que, entre 1929 e 1933, período mais negro da Depressão, o cinema deixou de abordar os problemas da sociedade e do homem americano, instalando-se como uma usina de sonhos, uma fábrica de esperanças. A crise econômica fez nascer um novo gênero, o filme de gangsters, ou “film noir”, que tentava esclarecer alguns aspectos dramáticos vividos pela sociedade, como foi em “O Fugitivo”, de 1932, de Mervyn Le Roy, que abordou a trágica situação de milhões de pessoas, refletida na figura de um ex-prisioneiro que, livre mas sem emprego, vivia miseravelmente e atirava-se desesperadamente contra o mundo.E daí começaram a surgir filmes que, em metáforas, parábolas, gozações, violência e terror, tentavam mostrar aos americanos que o cotidiano deles não tinha nada de “happy end”. Foi assim com o primeiro “Frankenstein”, de James Whale, de 1931, com Boris Karloff. O “New York Times” afirmava que, vendo o filme, todo mundo foi se exorcizar nas salas de cinemas, e, coincidentemente, foi no mesmo ano em que Ted Browning fez o primeiro “Drácula”, com Bela Lugosi mais vampiresco do que nunca.
Esses gêneros driblavam as restrições impostas pelo Código Hays e representavam melhor do que qualquer análise social o imaginário angustiado do país vítima de uma neurose coletiva. “O Médico e o Monstro”, de 32, de Rouben Mamoulian, e “King Kong”, de 33, realizado por Merian C.Cooper e Robert Schoedsack, confirmaram que o cinema de terror respondia aos temores daqueles anos, eram verdadeiros rituais de despossessão dos quais os espectadores participavam para espantar as obsessões cotidianas, desde a falta de grana até desemprego e subsistência. “De mercadores de sonhos, os produtores de Hollywood tornaram-se mercadores de pesadelos”, segundo o “Times”.
Mas o presidente Roosevelt era o dragão lutando contra a Depressão. Sorte dele que contou com total apoio de Hollywood, e ninguém como o diretor Frank Capra melhor transmitiu, em seus filmes , os ideais que o público precisava absorver para vencer a crise: segurança, otimismo, crença no poder da democracia, na liberdade de expressão, no desejo de progresso e no lema de Grande Oportunidade. O idealismo era abençoado pelo destino e pela sorte, e não sem razão Gary Cooper ficou milionário com a herança do tio em “O Galante Mr.Deeds”, de 36, para depois de rico ter de enfrentar os políticos profissionais, os burocratas, os corruptos e toda a sujeira do mundo dos altos negócios e negociatas, exatamente a podridão que Roosevelt tentava extirpar do país.
O cinema, enfim, mostrou que a recessão de 29, com a crise na Bolsa de Nova York, só fez bem à indústria do ócio e da diversão, do sonho e da fantasia. E Lula, o nosso Guia, talvez já esteja imaginando como tirar proveito dela, que ainda não nos atingiu. Pode ser que, a qualquer hora, ele institua uma Bolsa Roosevelt porque, diante do espelho, deve se julgar, oitenta anos depois, o criador do nosso “New Deal”.

7 de abril de 2008

MORRE CHARLTON HESTON

Ele disse, certa vez, que se dependesse dele cada cidadão norte-americano teria dentro de casa um pequeno mas básico arsenal de armas, desde espingardinhas de chumbos pra liquidar passarinhos até a mais sofisticada metralhadora tipo das que os soldados estão usando no Iraque. E quem pudesse dispor de mais espaço no quintal da casa deveria ter até um mini-tanque de guerra, pra evitar mal-entendidos com vizinhos bisbilhoteiros. Heston morreu anteontem (dia 5) aos 84 anos em sua casa de Los Angeles, e não foi devido a nenhum acidente com arma de fogo. Estava há alguns anos enfrentando os dissabores do Mal de Alzheimer, a mesma doença que matou Katharine Hepburn e que vem nocauteando Cassius Clay. Lembrando que da mesma causa morreu o ex-presidente Ronald Reagan, amigo e tanto ou mais reacionário e conservador do que o ator de “Ben-Hur” e tantos outros filmes épicos dos anos em que Hollywood rezava na Bíblia do produtor Cecil B. DeMille e produzia monumentos tipo “Os Dez Mandamentos”.
Falei sobre armas de fogo porque Heston presidiu durante anos a National Rifle Association, organização que defende os direitos do americano de ter armas em casa e que foi esculhambada pelo diretor Michael Moore no excelente “Tiros em Columbine”. Ou seja: depois de fazer tantos filmes bíblicos dá a impressão que Charlton Heston não absorveu nenhum dos mandamentos religiosos que a Bíblia ensina. Não sei se era católico, protestante, amish ou o que fosse, mas que era um republicano fanático isso era. E nunca deixou que, por isso, conseguissem destruir sua carreira no cinema, embora não faltassem tentativas.
Apesar dessas contradições, John Charlton Carter – nome de batismo - nascido em 4 de outubro de 1924 na tranqüila Evanston, Illinois, legou para o cinema norte-americano alguns títulos significativos, principalmente nas bilheterias. Na sua biografia resumida no guia “Astros & Estrelas” (Nova Cultural), ele citado como homem de vida pessoal impecável e aparência física que sugeria força e dignidade. Foi essa postura que atraiu o produtor Cecil B. DeMille, que estava caçando alguém para interpretar “Os Dez Mandamentos”, em 1956 e encontrou o tipo ideal para viver o papel de Moisés. Naquele ano, apesar de toda a sua grandiosidade, a superprodução indicada ao Oscar só conseguiu o prêmio de efeitos especiais. E Heston nem indicado foi para disputar a estatueta de melhor ator. Quem ganhou foi Yul Brynner em “O Rei e Eu”. Mas o Oscar veio em 1959 com “Ben-Hur”, dirigido por William Wyler, que teve 12 indicações e levou em onze delas, e é uma adaptação da história escrita pelo general Lew Wallace em 1880, falando sobre os primórdios do Cristianismo. Custou, na época, 15 milhões de dólares, rendeu mais de 80 milhões e aborda principalmente as relações entre Judáh Ben-Hur (Heston) e seu amigo Messala (Stephen Boyd), ambos disputando, no final, aquela magistral corrida de quadrigas filmada nos estúdios italianos de Cinecittà e que, por si só, custou um milhão de dólares.
Depois do êxito com “Ben-Hur”, Heston não parou mais. E fez, principalmente, outros personagens históricos, desde João Batista até o lendário El Cid, o gênio Michelangelo, o cowboy Buffalo Bill, o presidente americano Andrew Jackson e o cardeal Richelieu. Já contava com 18 filmes no currículo desde o primeiro, “Cidade Negra”, de 1950, e não ficou apenas nos grandes espetáculos hollywoodianos. Interpretou obras menos ambiciosas como dois da série “Planeta dos Macacos”, o primeiro em 68, depois “Terremoto” (74), “Aeroporto” (75), e dizia sempre que seu melhor trabalho havia sido em 58, sob a direção de Orson Welles em “A Marca da Maldade”, drama em preto e branco onde fez o policial que, numa cidade da fronteira com o México, investiga a bandalheira comandada por um corrupto e asqueroso xerife que o próprio Welles defende com maestria..
Dirigiu e atuou em “À Sombra da Pirâmide” (72) e “A Montanha de Ouro” (82), fez vários especiais para a televisão e em 89, aplaudido pelos ingleses, foi representar no teatro de Londres a peça “O Homem Que Não Vendeu Sua Alma”. Heston era casado desde 1944 com Lydia Clarke e tinha dois filhos. Fraser, o mais velho, apareceu como o Moisés bebê em “Os Dez Mandamentos” e é roteirista de cinema. Herdou do pai o desprezo pela vida mundana do cinema. Heston foi sempre assim, avesso às badalações. Gostava mesmo era de ficar em casa limpando os canos de suas armas.

4 de abril de 2008

SEM CHORO E SEM VELA

Entre as várias manifestações que estão acontecendo em comemoração aos 71 anos de idade do diretor teatral José Celso Martinez Correia e aos 50 anos da peça “O Rei da Vela”, faltou até agora uma exibição do filme que ele realizou nos anos 70, de parceria com Noilton Nunes, levando ao cinema a versão da obra escrita em 1933 por Osvald de Andrade e que se transformou num admirável fuzuê entre classe teatral, classe cinematográfica e a nossa então majestosa censura, aquela dos anos de chumbo que censurou Adoniran Barbosa, Mário de Andrade, Chico, Caetano e tantos outros, inclusive meu amigo Lourenço Diaféria, jornalista que escreveu uma crônica na “Folha de S.Paulo” narrando, de forma serena e sem ofensas, como é que ficava a estátua do Duque de Caxias com tanta titica das pombas que circundavam a antiga estação rodoviária paulistana, aliás, quase dentro do prédio onde antigamente ficava o famigerado DOPS de amargas lembranças.Azar nosso,que não rezamos pelos mandamentos dos censores daquela época, aqueles que encontravam subversão em quase tudo o que se escrevia, encenava, cantava e filmava. Só faltaram a eles, os censores, proibirem trechos de “O Lago dos Cisnes”, “Branca de Neve e os Sete Anões”, considerando que havia anões demais para uma só indefesa mocinha, ou encontrar palavrões em fábulas de Esopo.
Zé Celso iniciou as filmagens de “O Rei da Vela” em 71, partindo da encenação que o Grupo Oficina havia realizado em 1967 e que se tornou um espetáculo polarizador do tropicalismo. Três anos depois, quando o filme vinha sendo montado, seus dois realizadores foram presos e exilados, e todo o material filmado percorreu longos caminhos entre a África e a Europa, com dificuldades de conservação devido ao volume. Em 79, via Itamarati, o material voltou ao Brasil. Zé Celso e Noilton recomeçaram a obra até concluí-la, em 1981, dez anos depois. Para libera-la, a Censura exigiu dois cortes: um em cena onde aparece a bandeira brasileira, outra quando é entoado o Hino Nacional.
A Cinemateca Francesa exibiu “O Rei da Vela” no “Palais Chaillot”, numa sessão em homenagem ao filho de Oswald, Rudá de Andrade, que se encontrava preso há sete meses na França. Na época, em artigo publicado no jornal “Le Monde”, Bernard Dort dizia que em 1967 uma jovem companhia teatral que se instalava em São Paulo, o Grupo Oficina, criava uma peça singular ao encenar o texto oswaldiano. “Ninguém tinha ainda se atrevido a montar “O Rei da Vela”, nem as outras duas peças de Oswald, “O Homem e o Cavalo” e “A Morta”.José Celso e seus companheiros do Oficina fizeram do “Rei da Vela” o manifesto de um teatro verdadeiramente brasileiro, um “jogo de massacre” teatral que apoderou-se de todos os estilos, desde a representação épica brechtiana até os sambas do Carnaval, passando pela ópera e consumindo tudo numa grande fogueira de alegria”.
“Assim – prosseguiu o crítico francês – a história deste Abelardo, vendedor de velas funerárias – um bom negócio num país onde a mortalidade infantil era muito elevada -, que se desdobra em Abelardo 1 e Abelardo 2 e faz aliança com a aristocracia rural e depois com os americanos, não oferecia mais somente a imagem de uma sociedade provinciana e preguiçosa cujo barômetro era a alta do café: ela celebrava este cadáver gangrenado, o Brasil, transformado em espetáculo. Num Carnaval de teatro”.
Para Dort, a versão cinematográfica de “O Rei da Vela” restituiu no público o espetáculo memorável do fim dos anos 60, narrando tanto a historia do Oficina quanto a do Brasil dos últimos 15 anos, com cenas interpretadas no palco e alternadas com outras, filmadas em praias e nas ruas de São Paulo. Também intervêem filmes de atualidades, as canções de Caetano Veloso e o próprio Zé Celso manipulando seu material de trabalho. ...”é um filme verdadeiramente antropofágico que devorou tudo- concluiu o crítico do “Lê Monde”. “Assim, ele acaba com a última metamorfose do Oficina: as paredes e os muros do edifício explodem e tudo se abre ao ar livre. Como que minado do interior do filme o teatro transforma-se em “Uzyna”, num novo projeto intitulado “Sem Fronteiras”. O elenco de “O Rei da Vela” tem, entre outros, Renato Borghi, José Wilker, Renato Dobal e Flávio Santiago. Talvez ainda haja tempo para incluir o filme na extensa programação que homenageia o cinqüentenário profissional de Zé Celso.