Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
O material não segue nenhuma ordem, seja cronológica, seja de categoria ou qualquer outra. É apenas um registro digital de muitos anos de jornalismo.

17 de abril de 2008

Trinta anos... DO HUMOR À INGENUIDADE DA CHANCHADA

31.10.1975

Um saudável desfile do passado. Rever os velhos musicais da Atlântida, realizados na década de 50, é como acreditar que, daqueles anos para cá, a ingenuidade e o sonho não morreram. É o mesmo que crer que o espírito do povo brasileiro continuou inalterado entre ironias e fanfarronices. É como sonhar que, de lá para cá, não tivemos nenhum outro problema mais grave, social, político ou econômico, capaz de aniquilar essa nossa característica natural de transformar tudo em pilhéria.
É saltar um quarto de século a retornar a uma época em que não se falava em poluição, não se cometiam tantos crimes e seqüestros, não havia Watergate nem se pensava em contratos de risco, o Corinthians era a alegria do povo, o Carnaval tinha o cheiro do lança perfume, as crianças podiam brincar nas calçadas sem medo de motoristas psicopatas, os pássaros ainda cantavam – hoje com a poluição do ar eles tossem – e o povo ia aos cinemas, em filas, para rir com um Oscarito, para ouvir Emilinha Borba e Marlene, atingido pelos inúmeros apelos que a ingenuidade dos filmes musicais de então possuíam.
Hoje, canta-se menos e pouco se ri. Até as piadas estão desaparecendo. E o cinema, como se sabe, descambou firme para a violência e o erotismo. Perdemos a inocência. E até nos sentimos frustrados com a oportunidade de, através de uma seleção de velhos filmes, rememorar um passado que, inegavelmente, nos permitia ter melhores satisfações. Talvez esteja aí o maior mérito de “Assim Era a Atlântida”, antologia que reúne trechos de 33 obras produzidas nos estúdios daquela companhia, no Rio, desde 1941 até 1962. Um documento precioso por si só, sem contar o fator da nostalgia, onde certamente está apoiado o trabalho do diretor Carlos Manga e do seu colaborador, Sílvio de Abreu.
Não importa se “Assim Era a Atlântida” foi elaborado segundo o modelo norte-americano de “Era Uma Vez em Hollywood”, a seleção dos velhos musicais da Metro. O que importa é que, entre as raras obras seletivas existentes no cinema brasileiro, foi montada exatamente aquela que mais fazia falta: a reunião, em 105 minutos, da contagiante alegria que a chanchada – então um termo carinhoso – espalhava entre um público que consumia o cinema nacional e que via, refletidas nas gags ingênuas de Oscarito e Grande Otelo, nas canções de Jorge Goulart, nas coreografias simplórias de Carlos Manga e Watson Macedo, nos bailados de Eliana, nos beicinhos de Fada Santoro, no heroísmo de Anselmo Duarte, nos galanteios de Cyll Farney. Na inocente maldade de José Lewgoy ou na sensualidade de Norma Benguel, imagens que faziam parte de um cotidiano feliz, espirituoso, fruto de uma época em que não se tinha vergonha de rir ou chorar.
Os que puderam acompanhar o desenvolvimento das produções da Atlântida têm aí uma excelente oportunidade de curtir o que se convencionou chamar de nostálgico. Os que não viveram aqueles anos, a nova geração que nasceu sob o estigma das guerras, da violência e de um cinema que é a imagem de sociedades doentes, podem verificar o que a chanchada representou em termos de comunicação com o público e como espelho de um povo que sofreu grandes mudanças em seu comportamento.
A chanchada foi um fenômeno que não pode ser dissociado da história do cinema brasileiro. Não pode ser ignorada, mesmo pelos céticos que hoje, diante de um Gene Kelly cantando na chuva, ou se uma Eliana com trajes de baiana dançando num musical qualquer, julgam o cinema do passado como alguma coisa primária, infantil, sem imaginação. A seleção que Carlos Manga e Sílvio de Abreu – que coordenou as pesquisas – realizaram, bebendo inspiração no modelo hollywoodiano, é um documento precioso, uma obra que, felizmente, foi idealizada e elaborada por profissionais que estão no ramo e tomaram parte ativa no fenômeno do filme musical, ou da comédia musical, ou do drama musical brasileiro.
Se existem observações de ordem técnica a serem feitas, são poucas. Talvez os trechos demasiadamente longos dos filmes apresentados – 27 chanchadas e 6 dramas -, o que é justificável: Manga e Silvio de Abreu não tiveram muito material para montar a antologia, já que boa parte dos negativos dos filmes da Atlântida foi destruída por um incêndio em 1952 e uma inundação em 1971. Talvez, também, alguma falta de imaginação dos realizadores no caso das entrevistas inseridas entre os trechos das comédias. Os depoimentos de Fada Santoro, Eliana, Grande Otelo – que conclui o filme com uma homenagem a Oscarito, o maior ídolo no elenco da Atlântida -, Cyll Farney, Anselmo Duarte, Inalda, Adelaide Chiozzo, José Lewgoy e Norma Benguel são tomados, com exceção ao de Otelo, diante dos já conhecidos cartões postais da paisagem carioca, e poderiam ser mais originais. Esses pequenos equívocos pouco significam diante do conteúdo das obras selecionadas, seus números musicais e uma montagem que valoriza os melhores momentos de cada chanchada, tornando o documentário dinâmico, tratado com escrúpulo.. Além disso, Carlos Manga evitou qualquer visão crítica sobre o gênero, permitindo apenas sua apresentação como o cinema contagiante de uma época. Manteve, inclusive, alguns trechos irônicos que se interligam com o presente, como aquele onde Oscarito diz: “Essa política nacional vai mal”. Depois de tudo, o público que se diverte com as estripulias chanchadescas só lamenta que a antologia não seja colorida.

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