Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
O material não segue nenhuma ordem, seja cronológica, seja de categoria ou qualquer outra. É apenas um registro digital de muitos anos de jornalismo.

14 de abril de 2008

TRINTA ANOS DE CINEMA BRASILEIRO

Sem qualquer pretensão didática ou o que seja, inicio hoje uma republicação das críticas que publiquei na “Folha de S.Paulo” entre o final dos anos 60 e o final dos anos 80, ou seja, mais ou menos 30 anos assistindo filmes ótimos, bons, regulares, mais ou menos e péssimos, e os péssimos botei pra fora desta minha modesta contribuição aos que precisam de informações sobre um período que, se foi muito bom, também foi muito ruim, e as gerações mais velhas devem saber quais as razões, chumbo grosso pra cima da gente, cineastas, artistas, jornalistas etc etc etc. Mas estou colocando no blog as criticas da forma como foram publicadas na “Folha”, sem modificações. Espero que elas sirvam como uma fonte de consulta ao pessoal que está começando as carreiras em Jornalismo, Comunicação, Relações Públicas, Publicidade e todas as outras áreas sobre as quais o cinema teve e continua tendo uma decisiva influência. Espero que tirem bom proveito de tantas e tantas linhas escritas em quase 30 anos escrevendo sobre um cinema que sempre procurei defender, quando bom, mas sempre critiquei, quando ruim. E vamos lá.

A DISCUSSÃO DA VIOLÊNCIA

“Quando a morte não incomoda, a existência perde importância e sentido. Quando o sangue não horroriza, o sangue corre. Quando as almas endurecem e se acomodam à brutalidade, só uma brutalidade gigantesca as despertará. E violência é empurrada por uma poderosa inércia.Evaporou-se o nosso senso trágico, perdemos a noção do amor à vida. Está acionado apenas o espírito bufo. Sendo assim, gargalhemos com esta macabra pilhéria que acabamos de pregar nos autores do “Livro dos Recordes” e dos compêndios de Geografia: a verdadeira Chicago está aqui”.
O trecho é do comentário de Alberto Dines, “Chicago”, publicado na quinta-feira última na “Folha”, página dois. Repito, para quem não leu, porque ele se liga intimamente aos atuais acontecimentos – os crimes do Esquadrão da Morte na Baixada Fluminense, a recente prisão e soltura do delegado Sergio Fleury, em São Paulo, a violência praticada contra Milton Morais em Guarulhos – que ampliam a atualidade do filme “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco.
Cinema e realidade se entrelaçam. Lemos nos jornais, hoje, notícias de que só entre janeiro e fevereiro deste ano foram encontrados, crivados de balas e mutilados, setenta e quatro cadáveres que teriam sido vítimas do ramo carioca do Esquadrão.Os fatos, portanto, conferem a “Lúcio Flávio” um espaço maior como obra que resume, como cinema, aquele compromisso quase sempre renegado de manipular a realidade sob a qual vivemos e utiliza-la como exemplos.
Mais que Mineirinho, Paraíba ou Perpétuo, Lúcio Flávio Lírio foi quem praticamente abriu toda a intensa polêmica que envolve a organização parapolicial, o Esquadrão, que estabeleceu regras e modelos próprios para sua justiça. Ninguém ignora sua existência e os esforços de muitas autoridades para denunciar a organização e, ao mesmo tempo, colocar um ponto final nas suas arbitrariedades, que normalmente enchem cemitérios. Crimes mantidos impunes sob a proteção de uma lei que já virou galhofa. Ninguém acredita. Justiça, hoje, é termo que perde lugar nos dicionários. O procurador Hélio Bicudo tem o seu ótimo testemunho, “Meu Depoimento Sobre o Esquadrão da Morte” (editado pela Paz e Terra) e quem leu teve a chance de verificar até que ponto chega a ação desse (ou desses) grupo parapolicial quando coloca, em, seu index, o nome de determinado marginal.
A obra de Babenco toma o tema como ponto de referência para discutir a atual problemática do crescimento da violência na sociedade brasileira. E o faz com sangue nas veias. O tema poderia ser analisado através de qualquer outro marginal além de Lúcio Flávio Vilar Lírio, assassinado em agosto de 1975 numa cela da penitenciária Lemos de Brito, no Rio, com 19 facadas. Babenco, entretanto, já tinha boa parte do trabalho feita pelo escritor e jornalista José Louzeiro, autor do livro em que o filme é baseado e que, em 75, lançando sua melhor obra, o fez provocando impacto porque narrava exatamente a vida de um bandido que ousara denunciara existência do grupo de eliminações sumárias. O livro já é um roteiro, composto de farto material colhido por Louzeiro, que entrevistou Lúcio Flávio várias vezes.
Não se pode duvidar, em nenhum instante, das qualidades formais do filme.Hábil e sensível aos momentos da nossa realidade, Babenco construiu um espetáculo cru varrido o tempo todo pelo jogo entre policiais e marginais e por uma violência que as imagens procuram salientar na tentativa de especular sobre assuntos que abrangem a tortura física, a corrupção, a falência da Justiça, as implacáveis perseguições e a brutalidade sem freios que campeia dentro da sociedade brasileira e que, ainda lembrando o comentário de Alberto Dines, nos dá a impressão de estarmos vivendo na Alemanha dos anos 30, isto é, amortecidos. As propostas da obra podem ser discutíveis. Não podem, porém, ser ignoradas. Usando o estilo dos policiais americanos dos anos 40, transposto para o nosso ambiente de violência e asfixia, Babenco consegue um casamento ideal entre o espetáculo e a denúncia num filme onde procura refletir as condições em que Lucio Flávio foi transformado numa das mais famosas vítimas do Esquadrão. Um “herói” de boa árvore genealógica, classe média, estudado, boa pinta, poeta nas horas vagas, consciente do seu papel, enredado num esquema do qual nunca pôde escapar. Lúcio Flávio chegou ao fim do seu ciclo de crimes com o testemunho do que haviam feito dele: um marginal vilipendiado, torturado, humilhado, o otário que, para os policiais – o delegado Moretti e seu comparsa Bechara, no filme desempenhados por Paulo César Pereio e Ivã Cândido – não passava de um instrumento através do qual, impunes, os corruptores realizavam suas transações, assaltos, tráfico, roubos , etc,
O impacto do livro de Louzeiro se nivela ao que Babenco , com sensibilidade, estabeleceu nas imagens. No plano também de outra obra importante do atual cinema brasileiro de enganamento e de propostas, “Barra Pesada”, de Reginaldo Faria, “Lúcio Flávio” é uma sucessão de fatos reais envolvidos por certas concessões que o diretor e Louzeiro foram obrigados a fazer para que o filme não tivesse, na Censura, seus mais vigorosos momentos (os devaneios amorosos entre o personagem e Janice, sua amante, o pesadelo do marginal, na cela, ao sonhar com sua morte, o instante em que é obrigado, como ser humano, a descer à degradação total sob os efeitos da tortura) impedidos de atingirem um público que poucas vezes, diante de filmes nacionais, pôde refletir, perplexo, acerca de uma determinada realidade.
Exceção a esses “presentes” aos censores – os policiais federais mostrados como exemplos de humanismo e bondade, os nomes fictícios outorgados aos corruptores de Lúcio Flávio, os letreiros justificando a posterior punição aplicada aos policiais envolvidos no caso – o filme só tem o equívoco de lançar o marginal aos olhos da platéia como um bandido qualquer, já que Babenco não se preocupou em defini-lo melhor a partir de certas origens que, como o próprio diretor afirma, poderiam te-lo levado à Medicina, à Engenharia ou a outra profissão qualquer que não a marginalidade.
Uma obra forte e vigorosa, construída com simplicidade, linearmente, que se repete em vários momentos mas é toda ela tocada por um realismo trágico do qual podemos extrair lições. Afinal, embora fale abertamente – quase sempre com ousadia e coragem, algumas vezes com certa timidez – sobre os métodos do Esquadrão e o processo de envolvimento dos policiais na proteção ao marginal para proveito próprio, o filme não pode ser discutido apenas por essa ótica. Deve, isto sim, ampliar as discussões sobre a violência em todos os níveis. Afinal, não é só o Esquadrão o responsável pela brutalidade odiosa que se alastra sobre nossas cebeças, e o recente caso do jornalista Milton Morais é mais do que suficiente para servir como prova de que estamos afundando em poças de sangue.
9/03/1978

Um comentário:

Anônimo disse...

Um site brasileiro para amantes do cinema, o CineDica.