Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
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16 de abril de 2008

Trinta anos... A TRAGÉDIA DOS CÁRCERES E UM GRITO PELAS LIBERDADES

21/06/1984

“Memórias do Cárcere”, o maior acontecimento do cinema brasileiro este ano, já está em julgamento junto aos espectadores. E é quase certo que o filme de Nelson Pereira dos Santos, adaptação excepcional do romance homônimo de Graciliano Ramos, recupere o prestígio que o cinema nacional vem perdendo gradualmente junto ao público, já que a maioria crê que não existe nada mais além das indefectíveis chanchadas, ou pornochanchadas, e dos pornodramas de sexo explícito.
Existe, mas é raro, um filme absorver tanto e emocionar tantas pessoas como tem ocorrido com “Memórias”, exibido numa única sala e que o espectador pode ver fazendo reservas antecipadas de ingressos com 48 horas de antecedência do dia e da sessão que escolher. A obra de Nelson Pereira dos Santos, que mais uma vez se debruça sobre a literatura de Graciliano Ramos – a primeira foi em 63, quando adaptou “Vidas Secas” – já se justificaria pelo fato de resgatar, em imagens, uma das peças mais poderosas da literatura brasileira, não fosse também o fato de ter levado todas as emoções das memórias do escritor até o Festival de Cannes, este ano, vencendo o disputadíssimo prêmio da crítica internacional que, para muitos, significa mais importância do que a própria Palma de Ouro.
Volta-se, aí, ao Brasil do final de 1934, quando as diferentes tendências da esquerda tentaram unir forças para impedir o avanço do fascismo, representado pela Ação Integralista Brasileira e as indecisões do governo de Getúlio Vargas. O movimento culminou na criação da Aliança Nacional Libertadora, lançada em março de 35, formado por adeptos recrutados nas classes médias urbanas, especialmente militares, intelectuais, profissionais liberais e estudantes. Comunistas, socialistas, católicos, positivistas e democratas de vários Partidos, no entanto, viram a sede da ANL ser fechada menos de quatro meses depois por força de um decreto governamental de julho de 35. Em novembro, Luís Carlos Prestes lidera o levante contra os quartéis em Natal, Recife e Rio de Janeiro. O Exército sufoca. Daí em diante vem a repressão desencadeada contra todos os suspeitos de colaboração com a extinta ANL, suspendem-se as garantias individuais de todos os cidadãos. Um deles: o escritor Graciliano Ramos, que em março de 36 ocupava o cargo público de diretor de Instrução do Estado de Alagoas. Preso, ele é conduzido à longa e tormentosa viagem que descreve nas memórias dos cárceres onde esteve preso, sem acusação ou culpa formada, durante 10 meses e 10 dias. Graciliano, no filme interpretado vigorosamente por Carlos Vereza, morreu em 20 de março de 1953. O romance – se é que se pode chamar de romance – só foi publicado depois de sua morte.
Um relato cruel, humano, emotivo, tenso e emocionante onde estão citados nada menos do que 236 personagens que Nelson Pereira, na adaptação, reduziu para 103, sem contar 700 figurantes. Três horas e 7 minutos de duração que jamais cansam o espectador, um bilhão e 50 milhões de cruzeiros gastos na produção e campanha promocional, e a expectativa de que estará pago assim que atingir um milhão de pessoas, o que não será difícil e pode ocorrer bem antes dos dois anos previstos pela Embrafilme, tamanha a expectativa do público em relação à obra.
“O cárcere, em meu filme, é uma metáfora da sociedade brasileira. No espaço exíguo da prisão a dinâmica de cada um é mais clara: a classe média militar, o jovem, a mulher, o negro, o nordestino, o sulista. O encontro com o prisioneiro comum, o ladrão, o assaltante, o homossexual. Graciliano registrou tudo isso, lutando contra os próprios preconceitos, e conseguiu nos deixar um testamento generoso, aberto. Gostaria de transmitir, como era o desejo dele, a sensação de liberdade, sair da cadeia das relações sociais e políticas que aprisionam o povo brasileiro”.
O depoimento de Nelson Pereira é também uma referência a uma das frases de Graciliano no romance: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda podemos nos mexer”.
A primeira idéia de adaptar “Memórias do Cárcere” nasceu quando Nelson Pereira filmou “Vidas Secas” e manteve uma relação direta com o trabalho do escritor. E porque, em 63, o Brasil estava mergulhado num clima de violência política e institucional. “Memórias” contava a mesma história em outra época, a realidade se repetia. Mas o Brasil dos anos 60 não dava condições a nenhum cineasta, por mais ousado, de levar adiante um projeto de adaptação que Nelson Pereira só retomou em 1981, sem nenhum problema político de censura.
“Qualquer significado político, no filme, deve ser extraído pelo próprio espectador e, assim, estou sendo fiel ao pensamento de Graciliano Ramos. O livro, como o filme, não é político. Trata da condição humana de forma universal”, afirma Nelson Pereira. No filme, apenas alguns personagens conservam os nomes reais citados pelo escritor: Heloísa (Glória Pires), a mulher ciumenta que depois se transforma e luta pela liberdade do marido; doutor Sobral, Cubano e o Capitão Lobo, figuras que conviveram com Graciliano e que estão representadas por atores por atores como Jofre Soares, José Dumont (Mário Pinto, um comunista), Nildo Parente como Emanuel, preso político que na cadeia se comportava como alto burguês, Wilson Grey fazendo Gaúcho, marginal carcomido mas cheio de humanismo. Em participações especiais aparecem Paulo Porto, Nelson Dantas, Monique Lafont, Fábio Sabag, André Villon e Silvio de Abreu. A primeira revolução do cinema brasileiro ocorreu com a eclosão do Cinema Novo. A segunda, como afirmou um crítico francês, começa agora com “Memórias do Cárcere”.

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