Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
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31 de janeiro de 2008

RIDÍCULO FASCISTÓIDE

O título acima é propriedade do jornalista Paulo Francis em um artigo que publicou em sua coluna na “Folha de S.Paulo”, antes da estréia, aqui, do filme “O Franco Atirador”, do diretor Michael Cimino, de 1978, originalmente “The Deer Hunter”, literalmente “O Caçador de Veados”. Falava sobre metalúrgicos da Pensilvânia convocados para lutar na guerra do Vietnã. Francis dizia, então, que o filme havia sido encampado pela direita norte-americana como prova de altruísmo e patriotismo (“sem falar na inocência e candura”) dos americanos na Indochina. “A esquerda considera o filme uma fraude absoluta, uma tentativa racista, semi-fascistóide de iniciar uma revisão dos crimes cometidos pelos EUA na Indochina”. E, diante de tanta polêmica, ele, Francis, que não pretendia assistir o diabo do filme, acabou cedendo e foi. Pior pro filme que, premiado naquele ano com cinco estatuetas de Hollywood, acabou esculhambado pelo crítico brasileiro na época morando lá em Nova York.
Não que a crítica tivesse significado muito, porque, nas bilheterias, “O Franco Atirador” foi um sucesso, como foi sucesso o também ridículo e fascistóide “Os Boinas Verdes”, presente do ultra americanóide John Wayne aos americanos que apoiavam a guerra no Vietnã. . Bem, não importa. A menção ao filme, e à crítica do jornalista brasileiro, vem à tona porque, se quase sempre foi vocação do cinema americano bancar a defesa intransigente dos valores do “american way of life”, até hoje os ranços da caça às bruxas permeia o cinema, a literatura, a imprensa etc etc etc. Na segunda-feira, 28 de janeiro agora, em artigo no “Estadão” intitulado “Espasmo Obscurantista” , o professor Carlos Alberto DiFranco disse que a universidade européia sofreu um espasmo desse tipo quando 67 professores da Universidade La Sapienza, de Roma – tem 4 mil e 500 docentes – incitaram uma centena de alunos a se manifestarem contra a presença do papa Bento XVI na abertura do ano letivo da instituição, alegando que o papa, um intelectual reconhecidamente brilhante, representaria “um ataque ao vanguardismo e à modernidade”. Resultado: Bento XVI cancelou a conferência certamente para evitar constrangimentos. Na Universidade, fundada pelo papa Bonifácio VIII em 1303, o texto preparado por Bento XVI, “uma fascinante viagem da filosofia em sua busca da verdade” – disse o professor DiFranco – foi lido sem a presença dele e longamente aplaudido pelos presentes ao ato acadêmico.
“Na verdade, o que se viu foi a apoteose da burrice, do laicismo intolerante e da mediocridade”, diz o professor DiFranco em seu artigo no “Estadão”. E vai além: “O laicismo fundamentalista pós-moderno não é apenas uma opinião, um conjunto de idéias ou uma convicção, que se defende em legítimo e respeitoso diálogo com outras opiniões e convicções, como é próprio da cultura e da praxe democrática. Trata-se, infelizmente, de uma “ideologia”, ou seja, uma cosmovisão – um conjunto global de idéias, fechado em si mesmo – que pretende ser a “única verdade racional”, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, na educação, etc...
O professor DiFranco se refere, em seu artigo, a “uma nova Inquisição”, aquele movimento religioso – também conhecido como “Santo Ofício” – que era um tribunal eclesiástico investido na função de investigar e punir os considerados crimes contra o catolicismo, ou a fé católica. E daí? – perguntariam os que lêem este material. Primeiro, porque o artigo do professor Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética – Brasília precisa dele, não é? – e especialista em Comunicação, levanta uma questão que ainda hoje ferve nas nossas artérias: até onde vai a nossa liberdade de pensar e exprimir aquilo que pensamos?. Alguém não se lembra, por exemplo,das recentes ameaças contra os órgãos de imprensa que fustigaram – e continuam fustigando – o Governo corrupto instalado no país?.
Inquisição apareceu na Idade Média para combater as heresias, e os julgados heréticos eram, na maioria, levados à morte, quase sempre obrigados a confessar sob tortura. E o artigo assinado pelo professor DiFranco me fez lembrar um filme que revi recentemente, “Testa de Ferro Por Acaso” {1976, direção de Martin Ritt, com Woody Allen, disponível em boas locadoras e recomendável), que trata exatamente naquela Inquisição instituída nos Estados Unidos a partir do início dos anos 50 e mais conhecida pelo famigerado nome de “Mccarthysmo”. Se alguém pensa que tudo aquilo tivesse acabado, ledo engano. A caça às bruxas está mais ativa do que nunca, e com certeza não vai morrer tão cedo. O diretor Martin Ritt (Norma Rae) disse, na época do lançamento do filme, que sua obra aborda “os maus tempos que, lamentavelmente, podem voltar qualquer dia destes”. Por acaso o que tentaram fazer com o papa Bento XVI não é obra de um novo macartismo, ou de uma nova Inquisição?
O período das listas negras do macartismo começou em 47, quando a Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos iniciou a série de interrogatórios na tentativa de descobrir quem era comunista – na época “comedor de criancinhas” – e tinha influência sobre os filmes de Hollywood. Pra pegar fogo, basta você acender o pavio. Alguém acendeu, e o fogo se alastrou com base numa idéia surgida antes, em 1939, quando o deputado Martin Dies - que certamente tem vários clones no nosso Congresso – viu “Confissões de Um Espião Nazista”, filme do diretor Anatole Litvak, com Edmund G. Robinson, e com certeza não gostou. Tanto que sugeriu a instalação de um grupo – hoje seria, aqui, uma nova CPI – para cuidar de quem fazia propaganda vermelha no cinema.
A turma da repressão entrou firme em 47, outubro exatamente, interrogando, de cara, 106 roteiristas, 36 atores, 11 diretores, seis músicos, quatro produtores, três dançarinos e 44 técnicos de várias áreas. A tropa toda de “comunas” estava impedida de trabalhar, pelo menos no cinema, sob a acusação de “atividades subversivas”. A pergunta que se fazia aos “delinqüentes” era uma só: “Você é ou foi alguma vez membro do Partido Comunista?”. Da resposta dependeria o futuro do ator, atriz, diretor, músico, técnico ou o que fosse. Era o céu – o perdão – ou o inferno, este para aqueles que se recusaram a responder e ainda indicar nomes de simpatizantes do comunismo. Dez deles peitaram os inquisidores e foram em cana, desde Dalton Trumbo (o diretor de um filme só, “Johnny Vai à Guerra”, excelente panfleto antibélico) até Herbert Biberman, Samuel Ornitz, Adrian Scott, Lester Cole, Albert Maltz, Alvah Bessie, John Howard Lawson, Ring Lardner e Edward Dmytryk, do faroeste clássico “Minha Vontade é a Lei”. Alguns outros chamados a depor preferiram se mandar dos Estados Unidos, como o escritor e dramaturgo Bertold Brecht, o diretor Joseph Losey (“O Mensageiro”) e, claro, Charles Chaplin, com certeza considerado vermelho por causa dos seus filmes e discursos onde defendia os oprimidos como seu personagem Carlitos.
Nos anos 50, com o respaldo do senador McCarthy – daí o termo “macartismo” – o negócio evoluiu pra pior. A caça ás bruxas, antes só restrita à turma do cinema, foi parar na televisão. Criou-se a figura do perdão para os que confessassem arrependimento e colaborassem, ou seja, instituiu-se o dedodurismo, o alcagüete, figuras muito bem conhecidas no nosso ambiente político e, principalmente, nos anos de chumbo que vivemos sob a ditadura militar. E foi então que Hollywood viu nascer a “lista negra 2”, continuação da primeira, com mais 324 nomes denunciados em depoimentos de dedo-duros como Ronald Reagan – anos depois presidente -, Gary Cooper, Robert Montgomery, Adolphe Menjou, Louis B.Mayer, Jack Warner, Lee J.Cobb e Edward Dmytryck, que mandou seu pedido de arrependimento e foi salvo da guilhotina. E outro, o diretor Elia Kazan (“Sindicato de Ladrões”), que tem uma curiosa história de vida. Acompanhem.
O jornalista Barry Gewen , editor do “New York Times Book Rewiew”, escreveu há alguns anos que provavelmente nenhum outro cineasta americano dominou uma época como Frank Capra que, nos anos 30, em pleno poder, já faturava três Oscars, era o mais bem pago da indústria do cinema, foi capa da “Times” e fazia propaganda para a fábrica de cigarros Philip Morris. No comercial, dizia o seguinte: “Eu fumo muito quando dirijo um filme. Gosto de fumar cigarros da Philip Morris porque não irritam tanto a garganta e isso é importante quando se usa muito a voz no seu trabalho”. Não sei do que ele morreu, talvez de câncer. Se fizesse um comercial desse tipo hoje, lá nos Estados Unidos ou aqui, seria certamente execrado. Mas, fumando ou não, Capra levava multidões aos cinemas com seus filmes politicamente corretos – “O Galante Mr.Deeds”, “Do Mundo Nada se Leva”) que, segundo muitos, eram verdadeiras parábolas sobre pessoas comuns forçadas a enfrentar a ganância e a corrupção dos ricos e poderosos. Diziam que a influência de Capra era potencialmente tão forte quanto a do presidente Franklin Roosevelt e, na época em que o país estava atolado na Depressão – quase como hoje com o
'crash' do setor imobiliário – ele salvava a alma dos pobres, dos chamados “heróis comuns”, usando as histórias otimistas e os atores preferidos, Gary Cooper, James Stewart e Clark Gable, perfeitos para os personagens que celebravam, principalmente, as virtudes dos ingênuos vindos das cidades do Interior.
Os filmes caprianos se identificaram com os ideais do presidente Roosevelt e seu grande projeto de reconstrução nacional, o “New Deal”, que era uma espécie de PAC do nosso Lula. Com uma diferença: Roosevelt criou e cumpriu, até certo ponto. Lula nem até o certo ponto. Ao menos até agora, época em que loteamento de cargos por obrigações políticas nos indicam que vamos ter um general comandando a UNE, um médico no Ministério dos Transportes, um economista no Ibama e, quem sabe, alguém em um novo Ministério – o dos Cartões de Crédito governamentais – para saciar a insaciável ministra Matilde Ribeiro, da Igualdade Racial, que na verdade não defende nem brancos nem negros, nem mulatos ou amarelos. Defende mesmo é o seu, e como.
O diabo é que nós, críticos, jamais descemos o pau em Frank Capra. Por quê? Simples. Quem é que não torce pelo mocinho babaca que sai do Interior, recebe milhões de dólares de um parente que nunca viu, vai para a cidade grande e descobre que lá não é o seu lugar porque todo mundo está mesmo interessado em sua grana. E que, altruisticamente, e como gosta o americano, decidia dividir tudo com os pobres. Aliás, a nova versão de “O Galante Mr.Deeds” é um lixo. Sugiro a versão original, com Gary Cooper. Nossas reverências aos filmes de Capra foram acertadas. Ninguém errou ao elogiá-los, e ainda hoje nós os vemos, em DVD, com aquele velho espírito do Bem destruindo a maldade, o bom mocinho dando exemplos aos bandidões da política – o senhor Deeds faz falta aqui, seria um competente senador – e, portanto, respeitamos a nós mesmos e aos nossos valores éticos e morais, bases do New Deal que o cinema de Capra representou. Mas, numa biografia lançada há alguns anos, “Frank Capra: a Catástrofe do Sucesso”, o autor, Joseph McBride, jurou que o homem que levou para o cinema o espírito do New Deal era, na verdade, “um reacionário enrustido e um opositor das medidas empreendidas por Roosevelt”. Será?.
Frank Capra conseguiu enganar todo mundo, e até mesmo sua mulher não tinha conhecimento da posição política do cineasta. O autor pesquisou e verificou que vários companheiros de trabalho – quase todos dos Democratas – acreditavam que ele, Capra, tinha os mesmos ideais. Mas, quando se trata de discutir idéias, o caldo engrossa. Publicações como a “Variety”, por exemplo, acusavam alguns dos personagens de Capra de serem “semicomunistas”. E o “The Saturday Evening Post” chegou a afirmar que Capra era venerado como “um camarada na então União Soviética”. Verdade ou não, McBride, o autor da biografia, afirma que Capra foi sempre um republicano, nunca votou em Roosevelt e admirava Franco e Mussolini. Mais tarde, na época do macartismo, ele teria sido informante do FBI, mas sua imagem de esquerdista nasceu em depoimentos dos que trabalharam com ele.
Essa vida secreta de Capra é apenas uma das muitas que os livros registram, envolvendo Hollywood e sua fauna, em parte, só surgiu por causa do macartismo e de sua participação – ou não – nesse maquiavélico sistema repressor. E tem a ver com o artigo do professor DiFranco sobre as estapafúrdias manifestações contra o papa Bento XVI. Artigo que ele conclui dizendo que “os 67 mestres da La Sapienza são a antítese da racionalidade e do espírito científico. São, de fato, paladinos de uma nova Inquisição”. Portanto, qualquer semelhança com inquisidores e macartistas não é mera coincidência.

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