Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
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24 de janeiro de 2008

"O CANGACEIRO" VEM AÍ

Os cinéfilos podem aguardar. Brevemente, esperamos, vai chegar em DVD nova cópia do clássico nacional “O Cangaceiro” de 1953, realizado pelo excêntrico Lima Barreto, prêmio de melhor filme de aventura no festival de Cannes daquele ano. Obra de um diretor de apenas dois filmes – este clássico e “A Primeira Missa”, de 61 – chegará às locadoras acompanhado de um documentário que vem sendo dirigido pelo estreante Paulo Duarte, com depoimentos de pessoas que conviveram com Lima Duarte, bem ou mal, incluindo aí Anselmo Duarte (‘O Pagador de Promessas’), Fernando Meirelles (‘Cidade de Deus’), a atriz Vanja Orico - que no filme cantou “Muié Rendera” – e parentes dos atores Alberto Ruschel e Milton Ribeiro, além de outros como eu, que pouco convivi com Lima Barreto mas tive uma boa experiência com o diretor pouco antes de sua morte, em 1982, abandonado pela classe cinematográfica.

Lima Barreto não morreu, escrevi na “Folha de S.Paulo” (Ilustrada) em 20 de setembro de 81. Creio ter sido um dos últimos – ou o último – jornalistas que entrevistaram o diretor de “O Cangaceiro” acompanhado do veterano fotógrafo Gil Passarelli quando o velho Lima estava vivendo num asilo situado entre o bairro de Bonfim e a Vila Proust de Souza, em Campinas. Lima Barreto morreu alguns meses depois, mas em 81 não estava nem gagá, nem à beira da morte ou agonizando, como disse na época um deputado federal ao sugerir que o ministro da Educação fizesse alguma coisa por ele, invocando a desatenção que foi dada a Glauber Rocha quando internado em Portugal..

Lima dizia já ter morrido simplesmente porque desprezava as entrevistas, não gostava de conversar com ninguém, principalmente jornalistas, e odiava gastar o que ainda lhe restava de tempo com pessoas que, na sua concepção, não eram cultas o suficiente para discutir com ele. E despachava todos dizendo que o mito estava destruído. Mas em 81 ele vivia lúcido, já com 75 anos, escondido de tudo e de todos. Fomos, eu e Gil, até o asilo em Campinas, e a intenção era entrevistar o cineasta. Uma tarefa difícil, primeiro porque as religiosas que dirigiam o asilo – ou orfanato – faziam uma espécie de capa protetora para ele. Depois porque, sem nenhuma perspectiva de entrevista, nos vimos obrigados a pular o muro da instituição, que não era baixo para nossas idades, e depois tentar, lá dentro, driblar a vigilância das irmãs e localizar o paradeiro do velho Lima.
Fomos encontrá-lo no refeitório, uma ampla sala onde ele assistia televisão sentado num sofá de couro, absorto, abandonado, mergulhado na “impenetrável solidão da velhice”, como diria Gabriel Garcia Marques no seu “Cem Anos de Solidão”.

Mas não era nenhum indigente. Estava há um ano naquele bucólico lugar, não no asilo e sim num pensionato anexo, pagando 20 mil cruzeiros mensais para ter direito ao sossego que queria, aos cigarros que fumava sem parar e aos remédios que precisava para aliviar as dores na coluna. Na época dizia-se que sofria de câncer, ou de tuberculose, mas as religiosas que cuidavam dele desmentiam.Tinha passado por vários tratamentos médicos e depois, por vontade própria, decidiu pelo asilo. O dinheiro vinha de uma ajuda da Secretaria estadual da Cultura. “O Cangaceiro”, seu único sucesso, rendeu 200 milhões de dólares para a Columbia, que comprou da Vera Cruz os direitos de distribuição do filme em todo o mundo, num acordo ingênuo e até hoje nebuloso. Para Lima Barreto, “O Cangaceiro” rendeu pouco mais de 200 contos nos anos 60.

Ele optou pelo asilo porque já conhecia o lugar, estivera lá em pior situação três ou quatro anos antes. Ficou internado em São Paulo, foi encontrado num porão no Bixiga até que alguém – não se sabe quem – o levou para o hospital Irmãos Penteado, em Campinas, onde recuperou-se. Mas um dia voltou ao asilo que já conhecia. Em 81, ocupava o quarto número quatro do primeiro pavilhão dos homens. A vida se resumia a ficar lendo na cama ou ir ao refeitório para ver TV. As irmãs diziam que ele era de fato uma figura impertinente, nenhuma novidade para os que o conheceram.. Megalomaníaco, era atirado nas frases e capaz de garantir que “Cidadão Kane” não passava de uma estupidez. Dizia que queria recuperar a saúde para ocupar o lugar deixado por Glauber Rocha porque o cinema nacional tinha morrido. “O cinema brasileiro tinha dois mitos, ele e eu. Morreu o primeiro, o segundo está aqui, com a coluna levada da breca.Minha doença é só coluna”. Indagado se acreditava que poderia se recuperar e voltar a filmar, contou uma história em “primeira mão”: “Eu e o Glauber planejamos fazer um filme juntos. Ele disse, certa vez, que “O Cangaceiro” era um grande filme mas tinha um grande defeito, era comercial e não tinha profundidade. Eu respondi: os seus são grandes filmes mas tema os seguintes defeitos: não tem nada de comercial e só têm profundidade. Então, vamos fazer um filme juntos, eu ponho o comercial e você põe a loucura. Ninguém entende os seus filmes, nem mesmo você. Ele concordou”.

Lima Barreto dizia que havia realizado “O Cangaceiro” porque o cinema brasileiro precisava de uma obra vigorosa para que pudesse ser descoberto no Exterior. “Aí, então, nasceu o cinema nacional. Os cineasnos quiseram imitar e só fizeram besteiras”. Era assim, enfático, e quando alguém se metia a discutir cinema nacional ele mudava de página dizendo “não há cinema brasileiro, ele não existe, ele morreu”. Em 81, nessa entrevista obtida a forceps, Lima dizia ter oito argumentos prontos para serem filmados, desde “Inocência” até Um Certo Capitão Rodrigo”, “A Retirada da Laguna”, “Plácido de Castro” e “Aprendiz de Cangaceiro”, onde queria mostrar que Lampião era um bom homem e não um fascinora. Mas cahava impossível porque, segundo ele, os produtores pensam logo no que vão gastar e quanto o filme pode render. “o diretor quer apenas criar, nunca pensa em dinheiro, que é coisa do seu Massaini (o produtor Oswaldo Massaini). O diretor improvisa. O Stroheim fez um filme que tinha três horas e meia no papel e quando ficou pronto tinha nove horas”.

Tragando um Hollywood atrás do outro, Lima Barreto não perdoava as telenovelas: muito pasteurizadas. Elegia “Os Ossos do Barão” a melhor de todas, mas não teve êxito porque o tema era paulista. “Mas se houvesse um Oscar, o Paulo Gracindo ganharia, assim como o Dionísio Azevedo quando interpretou “A Primeira Missa”, a melhor interpretação masculina que já houve neste país”.

Antes e depois de “ O Cangaceiro”. Era assim que Lima Barreto definia o cinema brasileiro. “Depois de “A Primeira Missa” não tive apoio para filmar mais nada, não havia dinheiro nem compreensão do Governo. Os produtores estavam naquela de mulher pelada e hoje filme bom é “A Dama do Lotação”...minha besteira foi não ter aceito nenhum dos convites que recebi para ir embora daqui, Polônia, França, Portugal, Espanha, Suíça e outros países. “O Cangaceiro” foi exibido em 190 países e ganhou 36 prêmios. O melhor foi na Venezuela, uma medalha de ouro do tamanho de um pires e mil dólares. A medalha está com meu filho. Artista está sempre na merda, precisa mesmo é de dinheiro. Não adianta dar a ele papel pintado pra enfeitar paredes. O único Governo que não me mandou nem um bilhete de felicitações por “O Cangaceiro” foi o brasileiro. É ou não é um país de merda?”.

Quis saber de Lima Barreto se ele tinha algum pedido a fazer, ou algum apelo. Resposta: “O apelo que eu faria é ao Demônio, pra restaurar a minha saúde”. E por que não a Deus?, indaguei. “Não, ao Demônio. Deus dá a dor só pra provar a força do Diabo. Eu dou a dor, Ele que me cure. E agora já chega: você cozinha essa merda toda e publica”. Foi assim o fim da entrevista. Ele sai da sala sem despedidas e retorna à sua solidão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ola Sr. Fassoni.

Sou um fa inveterado de (Vitor) Lima Barreto.

O senhor sabe quando os DVDs "O Cangaceiro" + "A Primeira Missa" + "O Velho Guerreiro Nao Morrera" vao estar a venda nas lojas ? Estou louco para adquirir todos eles...

Aguardo sua resposta.

Um abraco,
Ricardo.