Críticas, matérias, entrevistas e reportagens da carreira de Orlando Fassoni.
O material não segue nenhuma ordem, seja cronológica, seja de categoria ou qualquer outra. É apenas um registro digital de muitos anos de jornalismo.

17 de março de 2008

UMA SEMANA COM CHARLES CHAPLIN

Alguém pode me dizer por que o programa “Oito e Meia no Cinema”, da Record, só começa às 10 e 15 da noite dos domingos?. E por que a TV paga, no caso o Canal Cult, promove uma homenagem intitulada “Santo Chaplin”, já que sabemos que, de santo, Chaplin tinha pouca coisa?. São mistérios que os programadores da televisão brasileira nunca explicam, ou não sabem como explicar. Mas esqueça essas gafes, até certo ponto compreensíveis para o atual nível de imbecilidades da nossa tv, e acompanhe a boa programação que o canal Cult inicia hoje, terça, às seis da tarde, e conclui no domingo, dia 23, exibindo onze filmes clássicos de Charles Spencer Chaplin, o maiúsculo nome do cinema que morreu aos 88 anos em 25 de dezembro de 1977 e que, se vivo, iria comemorar os seus 119 anos de vida em 16 de abril.É provável que não chegaria festejar mais de um século de existência e bateria as botas antes disso, como bateu.
Mas, enfim, filmes de Carlitos na tv são sempre bem-vindos, e os interessados podem acompanhar a programação, de hoje a domingo, e que passo agora a vocês.
VIDA DE CACHORRO – (A Dog`s Life,1918, hoje, 18, às 18 horas) – Em 19l8, trabalhando já na First National, Charles Chaplin realizou inicialmente um pequeno filme documental encomendado pelo Governo dos Estados Unidos, cooperando na campanha de venda dos bônus de guerra (anos mais tarde isso seria considerado irônico, dado o tratamento de comunista que recebeu e que forçou a sua saída do país). Não existem cópias nem negativos dessa preciosidade. E já concluíra sua primeira comédia para o novo estúdio, “Vida de Cachorro”, onde faz um paralelo entre a vida de um cão e a de um vagabundo. O filme de apenas três rolos mostrou a luta pela sobrevivência de uma forma crua e foi definido pelo historiador Louis Delluc como “a primeira obra de arte consumada de toda a cinematografia”. Carlitos, o vagabundo eterno que então começava a nascer, primeiro salva o cãozinho que brigava com outros cães, depois salva a garota que, num salão de danças, levava também a sua vida de cachorro. Logo depois desse filme, Chaplin realizou “Ombro,Armas!”, onde o mesmo método dialético do conflito entre pequenas ilusões e necessidade social é aplicado à guerra, denunciada através de um herói que, sozinho, obtém a vitória para os Aliados. Nessa época ele lembra em suas memórias que o poderoso Cecil B.DeMille o alertara de que era perigoso, num tempo como aquele, fazer graça às custas da guerra. E se recordava, também, de um juiz que, em Augusta, lhe dissera: “O que me agrada em você é o seu conhecimento do que é fundamental. Você sabe que a parte mais digna do ser humano é o seu traseiro. E suas comédias provam isso. Quando dá um pontapé no traseiro de um senhor pomposo, você o priva de toda a sua dignidade”. Resposta chapliniana: “Não resta a menor dúvida: a bunda é a sede da nossa dignidade”.
EM BUSCA DO OURO – ( The Gold Rush, 1925, hoje, 18h50) – Primeira comédia de Chaplin para a United, a empresa que Chaplin havia fundado com Douglas Fairbanks e Mary Pickford, além de David Wark Griffith e William S.Hart, criada “para proteger a nossa independência”, disseram eles. Fairbanks e Pickford já estavam distribuindo seus filmes através da nova companhia, mas reclamavam de que, sem as comédias de Chaplin, o negócio estava preto e os prejuízos já alcançavam um milhão de dólares. A situação caótica só foi revertida com “Em Busca do Ouro”. A idéia para o filme surgiu depois dele ter visto algumas fotos do Alaska e do Klondike, quando imaginou uma história onde Carlitosse envolvia com o garimpo e com os homens rudes que rumavam para a Califórnia em busca de riqueza. Qualquer devoto do vagabundo conhece a antológica sequência em que ele cozinha as solas dos sapatos, imaginando um bom filé, e faz dos cordões um delicioso espagueti. “Na criação da comédia - dizia o senso do ridículo é estimulado pela tragédia. O ridículo, creio, contém um desafio: devemos rir do nosso desamparo na luta contra as forças da natureza, para não enlouquecer”
O CIRCO – (The Circus, 1928, amanhã, quarta, 18h) - .Comédia que Chaplin fez sob vários tipos de problemas. Um deles o divórcio de sua segunda mulher, Lita Grey, que a imprensa marrom explorou de forma obscena. Foi sua última experiência no ritmo de 16 fotogramas por segundo. Chaplin teve de treinar meses a fio com a atriz Mirna Kennedy para aprender equilibrismo – junto com ela que, evidente, nem se equilibrava nas próprias pernas - e realizar a parte da história onde o vagabundo, para escapar dos policiais, refugia-se no circo instalado numa feira de cidade do interior. Querem palco melhor para o vagabundo Carlitos aprontar as suas?. Reparem bem: num outro momento antológico de sua filmografia, Carlitos mete o pé numa estrela dourada achando que havia sido desprezado pela mocinha, depois de ajudá-la. E explode em ódio com o famoso pontapé que, em outros filmes, atingia sempre o vilão ou algum policial. No mesmo programa de “O Circo”, hora e meia depois, a semana Chaplin mostra o documentário Chaplin Today, onde o diretor iugoslavo Emir Kusturica – (aquele que levou o Leão de Ouro em Veneza, em 85, com “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios”) – discorre sobre o clássico filme de Charles Chaplin.
O GAROTO – (The Kid, 1920, quarta, 20h10) – Você assiste “O Circo” e depois pode acompanhar um dos mais notáveis filmes chaplinianos. “O Garoto” vai ser acompanhado por um documentário que será exibido às 21h20, “Chaplin Today”, que tem participação do diretor Abbas Kiastorami, examinando a obra. E o que foi “O Garoto”? . Muitos críticos acham que “The Kid” é mo filme mais popular de Chaplin. Aquele onde ele colocou grande parte de sua própria vida, mostrando na história do menino abandonado, adotado pelo vegabundo Carlitos, um pouco da sua própria infância e do ambiente onde vivera. O garotinho era Jackie Coogan. “Podem vocês pensar num vagabundo bancando o vidraceiro, consertador de janelas, e o garoto jogando pedras nas vidraças para que Carlitos fosse chamado a conserta-las?”, perguntou Chaplin aos seus atores, que não eram muitos. .Poderia discorrer sobre este clássico de Chaplin e acabaria num livro. Mas os chaplinianos de carteirinha já conhecem tudo o que o filme revela, principalmente em lições de vida e humanismo, então não adianta esticar o papo.Basta dizer que, ao achar o ator Jackie Coogan, Chaplin disse o seguinte: “Costumam dizer que crianças e cachorros são os melhores atores em filmes.Ponhamum garoto de doze meses numa banheira com um sabonete e, quando ele tentar agarrá-lo, as gargalhadas espocarão. Todas as crianças, de uma ou outra forma, têm gênio”.
MONSIEUR VERDOUX – (Monsieur Verdoux, 1947, 18h, quinta-feira). – Realizado por Chaplin em 1947, alterna humorismo com crítica social. O personagem foi concebido segundo um paradoxo de virtudes e vícios, um homem que, aparando roseiras, evita pisar numa lagarta enquanto uma de suas vítimas está senso incinerada.. Muito bem. O filme provocou escândalos e manifestações de protesto em todos os Estados Unidos, e talvez, hoje, seria intitulado “Bush, o Matador”. Por que não?. A desgraça do filme é que ele colocou novamente Chaplin diante dos apocalípticos censores que viam tudo como o fim do mundo. Mas o diabo chapliniano, sempre alerta para as perguntas mais idiotas de censores mais ainda – aliás, nada mudou daqueles anos para os nossos – foi indagado: “ o senhor acusa a sociedade e o Estado? Ele disse: “O Estado e a sociedade não são uns anjinhos do céu. Por certo, é permitido criticá-los, não?”.
TEMPOS MODERNOS – (Modern Times, 1936, quinta-feira, 8 e 20 da noite, e no sábado, dia 22, logo às 9 e meia da manhã)- Em 3 de julho de 1974, na “Folha de S.Paulo”, publiquei um artigo sobre “Tempos Modernos”, intitulado “A Crítica e o Humanismo de Carlitos”. Foi reproduzido num dos folhetins do Cineclube Macunaíma, um dos poucos que ainda restavam aqui e que reuniam aqueles grupos de pessoas interessadas mais em rever Buster Keaton do que JohnWayne, como é mais salutar acompanhar hoje Woody Allen do que Steven Seagal, ou filmes de Rocky Balboa, Rambo, Máquinas Mortíferas, Massacres de Serras Elétricas e daí em diante, um festival de baboseiras que idiotocinemaníacos – acho que inventei o apelido, perdoe-me Roberto Santos aí no céu – curtem como se nada de mais houvesse ocorrido alguns anos antes. O meu artigo dizia que se Charles Chaplin soubesse quantos problemas enfrentaria quando começou a filmar “Tempos Modernos”, em 1936, certamente teria desistido do projeto. E não teria feito, logo em seguida, o admirável “O Grande Ditador”. Seguem aqui trechos daquele meu comentário. Falei sobre a forma como, em 1971, Chaplin decidiu relançar o clássico no mercado mundial, sonorizado, valorizado por efeitos especiais e com o suporte de uma canção que ficou famosa, “Smile”. Chaplin não queria nada disso, ficou muitos anos bancando aquele chato que insistia em nunca mais mostrar coisa alguma pra ninguém porque era a maneira como ele se vingaria dos macartistas norte-americanos que o baniram dos Estados Unidos, nos anos da caça às bruxas – o macartismo, o AI5 deles, tão maléfico ou mais do que aquele que vivemos aqui – quando comunista era “comedor de criancinhas”. Hoje, com Iraque, Afeganistão, os chineses contra os tibetanos, os Chaves aqui do nosso lado etc,etc, podemos até achar que Chaplin era um santo quando considerado comunista. Perfeito, até podia ser, nada mais justo, considerando-se os tais de direitos humanos e os direitos da livre expressão, se é que estejam respeitando uns e outros. Pensem vocês. Hoje, se vivesse entre nós fazendo filmes, Chaplin faria um “Tempos Modernos” inspirado não apenas na sociedade baseada nos lucros, mas na sociedade apoiada na mais escrachada corrupção. Brasília, por exemplo, seria o cenário ideal para os ataques do herói vagabundo, este clown admirávelmente construído para lutar contra a era da máquina que começava a transformar a liberdade do homem numa dolorosa escravidão.
Em “Tempos Modernos”, a crítica de Carlitos aos tempos de maquinização toma apenas uma parte inicial do filme. Começa apresentando as engrenagens de uma indústria, o processo de produção em série e o empregado-robô Carlitos, sofrendo, como os outros, o processo neurótico de um trabalho mecânico que se limita a apertar parafusos sob a vigilância de um severo patrão, alguma coisa semelhante às lentes das câmeras da Globo flagrando os enlevos sexuais dos idiotas que se prestam a mostrar suas inutilidades intelectuais nos BBBs da vida. Aliás, se vivesse a tivesse acesso a um roteiro de qualquer BBB, Chaplin faria mais um clássico. E talvez fosse cognominado de “chavista”, ou amigo de Uribe, ou desafeto do Bolsa Família, um desses programas criados pra quem nunca teve família e com certeza nunca terá bolsa porque, quando perceber, a bolsa já terá sido parar nas contas de algum deputado do mensalão ou de outros conhecidos golpes nacionais, ou seja, brasileiros com marca registrada tipo exportação pra quem quiser pagar mais.
O personagem chapliniano de “Tempos Modernos” tem muito a ver conosco. Carlitos é submetido como cobaia aos testes da estranha máquina de comer, um demônio mecânico inventado para que o operário não perca tempo com o almoço. Alguém se lembra da distribuição de dentaduras por políticos interessados em saber como se comportavam – e se comportam, ainda – os desdentados que imaginavam comer melhor com dentaduras novinhas sem perceber que, sem comida, dentadura é como anzol sem isca?. Pois bem, o nosso vagabundo Carlitos tinha ao menos mais senso de humor e era mais politicamente correto. Despejou a sua ira contra o sistema de trabalho, começou a brincar com as peças da fábrica, desajustou o sistema de serviços, desobedeceu ordens e acabou na prisão como desordeiro. E, de etc em etc, acaba mexendo com sentimentalismo, humanismo e solidariedade.
Para Chaplin, “Tempos Modernos” foi um desastre. Foi obrigado a obter o visto de saída dos Estados Unidos para a Europa, isso já em 1952, quando terminava a era macartista nos Estados Unidos. E mesmo na Europa foi chamado de “bolchevista” só por causa de uma sequência tão simples quanto simbólica no seu conteúdo político. Se vocês reverem o filme, vão saber por que Chaplin criou, talvez sem querer, um dos mais clássicos momentos do cinema em todos os tempos: Carlitos pega a bandeira vermelha de sinalização de um caminhão a começa a agita-la para devolve-la ao motorista. E, de tanto agitar a bandeirola, acaba de transformando no líder de uma poderosa manifestação dos operários grevistas que vinham atrás. Essa sequência apenas vale por todo o filme.
A programação desta homenagem a Chaplin, um tanto fora do tempo mas ainda assim justificável e agradável, ainda terá, na sexta-feira, às 6 da tarde, “Um Rei em Nova York” e, às 19h50, “Chaplin Today”, com o curta “Casamento ou Luxo” (1923), filme pouco conhecido. No dia seguinte, sábado, 22, às seis da tarde, outro clássico dele, “Luzes da Ribalta” (Limelight, 1953). Nem é preciso falar algo sobre o filme, um dos mais conhecidos trabalhos de Chaplin. Basta recordar a trilha sonora que ele mesmo compôs e que até hoje é executada no mundo inteiro. Outra obra, portanto, para ser vista ou revista. E o ciclo chapliniano acaba no domingo, dia 23, às 5 e meia da tarde, com o magnífico “O Grande Ditador” (The Great Ditactor, 1940). Três anos antes, o diretor Alexander Korda sugeriu a Chaplin uma história sobre Adolf Hitler. O motivo?. Um erro de identidade, porque ele, Carlitos, tinha o mesmo bigodinho e poderia bancar o ditador nazista sem ofender ninguém. Não foi por aí. Dois anos de preparação do argumento chegou-se à história do barbeiro judeu e humilde que assume o lugar de Hitler, gira o mapa-mundi nas pontas dos pés como se fosse o dono do mundo – outra sequência magistral – e faz aquele seu clássico discurso final, onde foi além da fantasia e da ficção. Não sem problemas. O discurso final foi responsável, em grande parte, pela expulsão de Chaplin dos Estados Unidos, uma década mais tarde, quando o Governo norte-americano decidiu que um jundo de tensões seria mais proveitoso do que o mundo da razão. Ave, Bush!. Mas o apelo feito por Chaplin continua vigoroso como credo de um artista que acreditava que a consciência criadora jamais poderia ser silenciada.

Nenhum comentário: